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Oxigênio Podcast

172 Episodes

28 minutes | May 5, 2022
# 143 – Aporofobia: Rechaço, preconceito e hostilidade ao pobre
Neste episódio a Fabíola Junqueira e a Fernanda Capuvilla falam sobre o significado da palavra Aporofobia na vida cotidiana de pessoas em situação de rua no espaço urbano. Elas conversaram com o padre Julio Lancellotti que constantemente denuncia espaços hostis, com o professor Raimundo Ferreira Rodrigues que já esteve em situação de rua e hoje é doutorando em educação pela Universidade Federal do Tocantins e com a arquiteta Débora Faria que pesquisou sobre arquitetura hostil em seu projeto de mestrado.
22 minutes | Apr 25, 2022
# 142 – Por trás da conta de luz: o futuro do setor elétrico – parte 2
A energia elétrica no Brasil é cara. Nesta segunda parte do Episódio Por trás da Conta de luz, a meteorologista Alessandra Amaral fala como as crises hídricas são em parte responsáveis por essa conta, mas também porque falta estímulo à modernização do sistema elétrico nacional, o que inclui inovação tecnológica, investimento em energias renováveis e expansão das linhas de transmissão.
26 minutes | Apr 8, 2022
#141 – Os impactos das hidrelétricas na Amazônia
Você sabe quais podem ser os impactos da construção de uma usina hidrelétrica na região da Amazônia? Pois é, não são poucos e para esclarecer sobre esse tema, nós conversamos com alguns especialistas que nos mostraram como essa questão envolve estudos e análises de diferentes áreas das ciências e como está relacionada com o dia a dia de todos nós e com a vida de futuras gerações.
19 minutes | Mar 26, 2022
#140 – Por trás da conta de luz: compra e venda de energia
Você sabe quais são os principais desafios do aumento inevitável do consumo de energia elétrica? O que é e como funciona o mercado de energia brasileiro? Qual a relação entre crescimento econômico, consumo de energia elétrica e custo energético? Essas e outras questões sobre produção, compra e venda de energia serão respondidas no episódio.
46 minutes | Feb 18, 2022
#139 – Precisamos falar sobre a morte (com as crianças)
A partir de uma conversa com a autora de um livro para crianças, que fala sobre a passagem do tempo e sobre a morte e com duas psicólogas sobre o uso de textos literários com a finalidade de ajudar uma pessoa a enfrentar uma dificuldade, as repórteres Laís Toledo e Mayra Trinca e o colaborador Diogo Ambiel Facini produziram este episódio sobre como e por que conversar com as crianças a respeito da morte. Márcia Abreu, Lucélia Elizabeth Paiva e Maria Júlia Kovács são as entrevistadas deste episódio, que trata de um assunto que pode ser difícil de encarar, mas que não deve ser ignorado. Roteiro: Laís: Um jabuti, um bicho que pode viver uns cem anos, encontra uma siriruia, também conhecida como aleluia, que é um inseto que vive apenas um dia… Lina: – Para que tanta pressa? O mundo não foi feito em um dia – respondeu o jabuti com a boca cheia de manga. – O meu, sim. O jabuti balançou a cabeça. – Sempre exagerada… – comentou incrédulo. – Eu só tenho um dia. Só hoje. Tanto tempo se passou e eu ainda não tenho um namorado. – Tanto tempo?! Você tem horas de vida! É muito jovem para namorar. – Ah, vocês, velhos. Sempre achando que a gente é muito nova… […] – Não sou tão velho assim. Fiz cem anos há pouco tempo. – Cem anos? – exclamou a siriruia arredondando ainda mais seus olhos pretos. – Eu fui ninfa por um ano e já não aguentava mais. O jabuti tinha a cara toda amarela e doce. Mastigava uma manga com calma, saboreando. – Com o tempo, você se acostuma – disse ele, erguendo a cabeça para ver quantas mangas ainda poderiam cair daquela árvore. Laís: Você acabou de ouvir um trechinho do livro “O jabuti e a siriruia: o ciclo da vida”, escrito pela Márcia Abreu e ilustrado pelo Bira Dantas. Apesar de terem várias diferenças, o jabuti e a siriruia viraram melhores amigos e viveram uma aventura juntos. A história desses animais é contada no livro, que foi publicado no ano passado, pelo Estraladabão, o selo de divulgação científica para crianças da Editora UFMG, da Universidade Federal de Minas Gerais. Nesse episódio do Oxigênio, a gente conversou com a Márcia Abreu sobre esse livro, que traz uma aventura emocionante, um monte de informações sobre os animais e também uma reflexão sobre a passagem do tempo e sobre a morte. A Márcia, além de escritora de livros para crianças e para jovens, é pesquisadora e professora de Literatura na Unicamp. Então, além de falar sobre “O jabuti e a siriruia”, a gente também conversou sobre como a literatura pode ajudar as crianças a lidarem com temas sensíveis, como a morte. Mayra: Também sobre esse assunto, a gente conversou com a Lucélia Elizabeth Paiva, que é psicóloga e contou um pouco sobre a biblioterapia, o uso de textos literários para ajudar uma pessoa a enfrentar uma dificuldade. Ela também falou sobre como os livros podem ajudar as crianças durante o processo do luto, assunto que ela pesquisou no doutorado dela. Além de atender na sua clínica, ela também é pesquisadora e professora no Centro Universitário São Camilo. Diogo: Nossa outra entrevistada, a Maria Júlia Kovács, falou sobre a relação das crianças com o tema da morte, sobre o tabu que envolve esse assunto. A Maria Júlia é pesquisadora e professora de psicologia da USP e ajudou a fundar o Laboratório de Estudos sobre a Morte, também da USP. Eu sou o Diogo Ambiel Facini. Mayra: Eu sou a Mayra Trinca. Laís: Eu sou a Laís Toledo, e este é mais um episódio do Oxigênio. Márcia: Eles são diferentes em tudo: ela é rápida, animada; ele é rabugento e lento, como todo jabuti, né? Laís: Essa é a Márcia Abreu, apresentando os personagens principais da história, a siriruia e o jabuti… Márcia: Em um único dia, ela precisa resolver um monte de problemas. Principalmente, porque ela nasceu com uma asa torta, e aí ela se perdeu do bando dela. Então, ela vai precisar da ajuda do jabuti para encontrar o bando, encontrar um namorado, acasalar, colocar seus ovos e, com isso, ela vai completar o ciclo da vida, que é o subtítulo do livro. O jabuti, pelo contrário, teve uma vida longa, mas cheia de desilusões. Então, essa experiência de ter uma amiga vai mudar a percepção dele sobre a vida. Laís: Como a gente comentou, esse é um livro de divulgação científica, e a Márcia contou que também fez bastante pesquisa para entender sobre a vida desses animais tão diferentes. Márcia: Eu tive que ler vários artigos científicos da área de biologia, porque a proposta da editora é trazer conhecimento científico junto com uma história. A pesquisa sobre o jabuti foi mais ou menos fácil, porque ele é considerado um bicho de estimação, e esse é um dos temas que eu abordo no livro, porque a grande tristeza do jabuti é ter sido rejeitado por várias gerações de crianças. Então, ele vive num sítio sem mais ninguém da espécie dele. Tanto que ele acha que ele é único, que não existe ninguém como ele no mundo. A pesquisa sobre a siriruia teve que ser mais ampla, porque a gente não costuma conviver com insetos, né? Ao menos não amistosamente. Então, eu tive que aprender quais são os estágios pelos quais esses bichinhos passam, desde quando eles são ninfa, que é quando eles estão dentro da água, até que eles consigam voar. Então, você vê que o livro trata de vários temas complicados, né? Velhice, solidão, abandono, isso, no caso do jabuti. E deficiência, acasalamento, procriação, morte, no caso da siriruia. Laís: Para a Márcia, a gente tem que falar desses temas complicados sem tratar a criança como se ela fosse boba, sem dar uma explicação simplista. Márcia: Eu acho que a gente deve tratar de temas difíceis, assim, como a morte, a deficiência, a velhice, com honestidade com as crianças. Ninguém sabe o que acontece quando a gente morre. Então, por que é que a gente vai dizer “ai, quem morre vai para um lugar melhor”, “quem morre vira estrela”? Isso não é honesto. Mas também não dá para deixar a criança desamparada diante da finitude da vida e do grande mistério que é isso, né? Então, eu tento tratar disso com honestidade e com leveza, até com um pouco de humor. Laís: Para abordar essas questões, a Márcia contou que usou um truque narrativo: ela criou um narrador que não é um personagem da história, um narrador em 3ª pessoa, mas que se cola na perspectiva do jabuti, no ponto de vista dele… Márcia: Então, ele só conta o que o jabuti está vendo e o que está acontecendo com ele ou perto dele. Esse artifício resolveu dois problemas da história, que era descrever o acasalamento e descrever a morte. Laís: Na hora do acasalamento, o jabuti se perde da siriruia, e, quando eles se reencontram, ela apresenta o seu marido, o que passa a ideia de que o acasalamento já tinha acontecido. Depois, na hora da morte, os dois amigos também se separam. Márcia: O jabuti está exausto, porque ele não é acostumado a passar um dia andando e se envolvendo em tantas aventuras como foi, né? Então, quando ela fala para ele que está na hora de ela colocar os ovos, ele fala isso “vai lá, que eu vou tirar um cochilo aqui, que eu estou exausto”. Só que ele dorme e, quando ele acorda no dia seguinte, ela já está morta. Então, com isso, eu não precisei descrever o processo de morte da siriruia. Laís: Outra maneira que a Márcia encontrou para lidar com o tema da morte foi fazer com que isso não fosse um problema para a siriruia. Márcia: Para ela, viver um dia só não é um problema. Ela diz isso o tempo todo e ela fala que as coisas são assim, que foi assim com as outras siriruias e que, para ela, o importante é aproveitar aquele dia. Para ela, a morte não é um peso, nem é um drama. O que ela quer é viver intensamente as horas de vida que ela tem. Laís: Mesmo que a siriruia levasse essa questão da morte numa boa e que o momento em que ela morreu não tenha sido mostrado com detalhes, a Márcia também não quis terminar o livro de um jeito muito aberto. Márcia: Eu achei que também não era bom deixar um final assim “aí ela morreu e acabou”. Por isso, eu criei uma última cena, em que o jabuti acorda, percebe que a amiga dele está morta, mas que na água tem milhares de ovos. Ele vai lá observar aqueles ovos e ele acha que um deles se parece com aquela siriruia, tem uma cara como a da amiga dele. Então, isso não deixa a criança desamparada diante da morte, mas é honesto ao mesmo tempo, né? A vida é assim, uns morrem e outros nascem o tempo inteiro. Isso que é o ciclo da vida. Lina: Na superfície da água havia milhares de ovos boiando. O jabuti piscou para segurar uma lágrima, enquanto os observava. Eram bem pequenos, mas ele achou que, em um deles, havia uma ninfa de sorriso maroto. – É só esperar uns meses – pensou, com um otimismo que era novo para ele –, logo mais a diversão vai recomeçar. Não vai durar mais do que um dia, mas vai valer cada instante. Laís: Essa e outras partes do livro emocionaram os leitores. A gente pediu para Márcia contar sobre algumas experiências que ela teve ao ler em público “O jabuti e a siriruia” para adultos; no caso, para professores. Márcia: É muito interessante observar a reação deles. É muito legal ver os momentos em que eles riem, os comentários que eles fazem, do tipo: “Ah, eu sou igualzinho a esse jabuti!”. E eles torcem para que as coisas deem certo no final. E eles se emocionam com a situação do jabuti, do fato de ele achar que ele é único, que não tem ninguém como ele no mundo. Muitas pessoas se identificam com isso e ficam emocionadas. Lina: Naquele dia, o jabuti saiu de baixo da pedra e deu dois passos na direção do riacho. No terceiro, avistou uma revoada de siriruias. Aquilo era um verdadeiro espetáculo. Milhares de insetos voando juntos sob o sol. Foi caminhando em direção à água. – Que coisa! – pensou. – Como é que pode haver tanto bicho igual? Ele sempre se admirava com a existência de animais semelhantes. Pássaros eram dezenas. Borboletas, centenas. Insetos, milhares. Só ele era sem par. Nunca tinha encontrado, em toda sua longa vida, um outro animal como ele. – Sou único – concluiu. Tinha uma vaga lembrança de outros iguais a ele, saindo de ovos e caminhando numa areia quente. Mas era uma recordação muito apagada e ele concluiu que tinha sonhado. Era único. Laís: E, fora dessa situação de leitura pública, a Márcia disse que os leitores adultos falaram para ela coisas muito variadas sobre o livro. Márcia: Alguns acham que ele é uma história filosófica para crianças; que ele é sobre a relatividade do tempo; que ele é sobre a cooperação entre seres diferentes…  E é verdade: o livro é sobre tudo isso; mas ele também é uma aventura. Laís: E foi justamente isso que mais atraiu as crianças. Márcia: Elas querem mais é saber da aventura: se a siriruia vai mesmo conseguir encontrar um namorado em tempo; se o gato vai dar uma unhada nela ou não vai; se ela vai ser comida pelo pássaro… E isso é uma das coisas mais bacanas em literatura. Duas pessoas leem uma história, e cada uma tem uma experiência diferente. Laís: A Márcia, além desse livro do jabuti e da siriruia, já escreveu mais quatro livros para crianças e para jovens. Depois, você pode ver direitinho os títulos dos livros na descrição deste episódio, no site do Oxigênio. Bom, e a última história que a Márcia escreveu para crianças, antes do livro do jabuti e da siriruia, se chama “Vovô gagá” e também trata de um tema sensível, o Alzheimer. Márcia: Eu tinha uma experiência pessoal com esse tema, porque o meu sogro tinha essa doença. Então, naquele momento, eu li bastante, não só sobre a doença, mas sobre como falar sobre a morte com as crianças. Laís: Então, a partir dessas experiências com a escrita para crianças e também das pesquisas que a Márcia faz, que incluem os temas da infância e da literatura para crianças, a gente pediu para ela comentar um pouco sobre como, na visão dela, um texto literário pode ajudar a entender a vida e a morte de um jeito diferente daquele de textos não literários… Márcia: Eu acho que os textos literários ajudam muito a lidar com grandes problemas e muitas vezes ajudam mais do que um texto teórico ou um texto descritivo. Basta a  gente pensar nos contos de fadas, que lidam com os temas mais difíceis que há. Por exemplo, no caso de “João e Maria”, o abandono pelos pais, duas vezes. E mesmo histórias assim atraem as crianças há séculos. Tem até um livro já antigo sobre isso, que se chama “A psicanálise dos contos de fadas”, do Bruno Bettelheim. A ideia dele é que os contos de fadas ajudam a criança a entender coisas complicadas e a lidar com conflitos interiores que elas não saberiam exteriorizar em palavras. As ideias dele se tornaram polêmicas hoje em dia. Mas eu acho que uma coisa é certa: quando a gente lê uma narrativa, a gente se identifica com os personagens. A gente se coloca no lugar deles. E isso permite que o leitor viva situações difíceis na pele de outra pessoa, o personagem. Laís: Para a Márcia, essa experiência pode ajudar a criança (e o adulto também) a entender situações complicadas, mantendo um certo distanciamento, já que as situações são vividas pelo personagem. Mas não é só isso… Márcia: Além disso, na literatura, tem o prazer da fabulação, né? O prazer de acompanhar uma história bem contada, de ficar pensando: “Nossa, o que será que vai acontecer com ela? Como é que ele vai resolver esse problema?”. Isso tem a ver com a ligação que a gente cria com o enredo e a identificação que a gente desenvolve com as personagens. Bom, mas tem também o prazer do texto, né? De achar graça na maneira como uma coisa foi dita; de ficar emocionado com o modo como aquilo foi dito; de ficar surpreso com a junção de palavras que não costumam andar juntas. Por isso, eu acho que o texto literário é muito superior aos outros tipos de texto, quando se trata de ajudar crianças, e adultos também, a pensar sobre a vida e a morte. Laís: E, da mesma forma que a Márcia acredita que a gente deve tratar os temas difíceis com honestidade, sem ser simplista, ela também acha que essa atitude deve acontecer com relação à linguagem, ao jeito como o texto é escrito. Márcia: Tem muita história infantil que toma a criança como tonta e trata de temas triviais, numa linguagem cheia de diminutivos, cheia de frase curta… Pensem nos grandes livros da literatura infantil: eles não são assim. Eu falei agora há pouco dos contos de fada, mas tem também obras como “Peter Pan”, por exemplo; a “Alice no País das Maravilhas”; ou as histórias do sítio, do Monteiro Lobato, o “Sítio do Picapau Amarelo”. Elas são complexas; escritas em linguagem diferente daquela que a gente fala no dia a dia. E elas atraem as crianças há muitas gerações. Laís: Sobre essa questão de não querer simplificar demais o texto para as crianças, a Márcia lembrou de uma fala do C. S. Lewis, que, entre outras coisas, foi o autor das “Crônicas de Nárnia”. Márcia: Ele disse mais ou menos assim: “Uma história infantil que é boa só para crianças não é uma boa história infantil”. Laís: Algumas dessas questões que a Márcia falou foram discutidas também pelo crítico literário Antonio Candido, em um texto famoso dele, de 1988, que se chama “O direito à literatura”. Nele, o Antonio Candido defendeu que a literatura é um direito humano que não pode ser negado para ninguém. Ele entende a literatura de uma forma bem ampla, como qualquer mergulho no universo da ficção ou da poesia, o que inclui até um devaneio amoroso no ônibus, um causo, uma moda de viola… E o Antonio Candido acha que a literatura é essencial, mas não porque ela transforma a gente, automaticamente, em pessoas melhores. Para ele, a literatura traz tanto o “bem” quanto o “mal”; ou seja, ela não edifica nem corrompe ninguém. Então, ela seria tão importante assim por ter um poder humanizador, o que inclui desenvolver a percepção de que o mundo e os seres são complexos e às vezes até contraditórios. E esse poder tem a ver também com a maneira como o texto literário se organiza, se constrói… Laís: Bom, a gente queria entender mais sobre esse poder que a literatura pode ter para ajudar a organizar a mente, em especial a mente das crianças que passam por uma situação de luto. Então, para conhecer esse assunto a partir de outra perspectiva, a gente foi conversar com duas pesquisadoras e profissionais que não são da área da literatura, mas sim da psicologia. Mas, antes disso, só um recado: se você quiser conhecer mais livros infantis que falam sobre a morte, a gente deixou, na descrição do episódio, um texto com uma lista de sete livros infantis que falam sobre esse tema. O texto é do Marca Páginas, um blog que faz parte da rede de blogs de ciência da Unicamp. Eu fico por aqui. Quem vai acompanhar vocês agora é a Mayra. Lucélia: A biblioterapia é a utilização de um material literário, a utilização de livros ou histórias, com o objetivo de ajudar uma pessoa ou um grupo, para identificação, discernimento, de problemas pessoais e o enfrentamento de suas dificuldades. Então, eu utilizo histórias ou um material literário como um recurso terapêutico no enfrentamento às dificuldades. Mayra: Essa que você acabou de ouvir é a Lucélia Elizabeth Paiva. Nós conversamos com ela, que é psicóloga, para conhecer um pouco mais sobre a biblioterapia. Lucélia: Na contação da história ou na leitura de uma história, a gente vai se envolvendo, e aí, nesse envolvimento, conforme eu vou entrando na história, me envolvendo com a trama, eu vou me identificando. Eu posso me identificar com o personagem, eu posso me identificar com a trama, eu posso me identificar com o desafio, o conflito que existe naquela história. Isso vai promover uma emoção. Nesse envolvimento, eu vou estar mexendo, mobilizando emoções. E aí, a gente acaba tendo insights a partir do que aconteceu na história, a gente traz para a nossa vida, para as nossas necessidades, para aquilo que a gente está precisando trabalhar. Então, quando a gente percebe que aquilo que aconteceu na história a gente pode identificar e aplicar na nossa vida, a semelhança do problema da história traz uma aproximação, tornando acessível a solução de um conflito, a solução de uma questão pessoal. Então, a gente pode compreender que, por um problema, uma questão similar, a gente encontra esperança e possibilidades de enfrentamento para os nossos desafios, para os nossos conflitos. Mayra: A Lucélia contou que a biblioterapia é uma ferramenta, um recurso, que pode facilitar o crescimento emocional. E, na prática, a biblioterapia pode acontecer de diferentes formas e ser feita por diferentes pessoas. Lucélia: No processo da biblioterapia, eu posso ler um livro e eu mesma fazer reflexões a respeito. Então pode ser um movimento interno, muito pessoal. Outra forma que a gente pode usar a biblioterapia é, diante de outra pessoa – que pode ser meu filho, pode ser meu paciente, pode ser meu aluno –, eu utilizar uma história, para conversar a respeito depois, pensar, promover reflexões. Mayra: As reflexões provocadas pela história podem acontecer por meio de uma conversa, ou seja, da verbalização, mas elas também podem passar por outras formas de expressão… Lucélia: Eu percebo que nem sempre a pessoa quer falar, e talvez não seja nem o momento de falar, de expressar verbalmente, porque às vezes não se tem uma construção lógica imediata. Então, uma coisa que eu gosto muito é de poder expressar as emoções ou possibilidades a partir de atividades de expressão criativa. Por exemplo, desenho, modelagem, pintura e até mesmo a escrita. Mayra: Além disso, a escolha de um livro para ser usado como recurso terapêutico é diferente da escolha de um livro para se divertir. No caso da biblioterapia, a gente precisa ter alguns objetivos. O livro escolhido precisa ter alguma relação com as necessidades emocionais da pessoa ou do grupo envolvido. Lucélia: Por exemplo, o luto, eu vou selecionar uma história que tenha, de alguma forma, fatores que façam pensar, refletir sobre essa temática. Então, seja a personagem enfrentando uma situação, ou, para falar de alguma emoção ou algumas manifestações do processo de luto, ou um desafio qualquer, algo que atinja o meu objetivo. Mayra: Quando a gente for falar sobre a morte e sobre o luto com uma criança, a gente precisa mostrar para ela que existem várias formas de passar por esse processo e que ele é diferente para cada pessoa… Lucélia: É importante a gente utilizar uma história, por exemplo, que traga as possíveis manifestações do processo de luto. Então, poder mostrar que a criança pode ficar triste, mas que ela pode também rir, que ela pode ter vontade de ficar isolada, mas que ela pode ter vontade de brincar e se divertir, que ela pode ficar calada, mas que ela pode querer conversar com alguém. Então, é importante que a criança possa entender o que está acontecendo com ela, identificando que aquelas manifestações que aparecem ali naquela história, naquele livro, é algo que ela também sente, e que isso é natural, e que isso é esperado. Mayra: Outra coisa legal que a Lucélia comentou é que, para trabalhar esses sentimentos, a gente não precisa usar um livro que fale de uma situação exatamente igual àquela que criança está vivendo. Por exemplo, se a criança perdeu a avó, a história não precisa falar especificamente sobre morte de avó. Lucélia: A gente pode falar sobre a morte, sobre a vida, sobre despedida, sobre saudade, sobre tristeza. Depende do que eu estou querendo atingir naquele momento, precisa ver o que eu quero, qual é a necessidade que essa criança está me apresentando. De repente eu posso usar um livro que fale sobre enfrentamentos do novo, de uma coisa desconhecida. Eu posso utilizar um livro que fale sobre o medo, a ansiedade, a tristeza… sobre emoções que ela pode identificar nesse processo da elaboração de um luto. Mayra: Outra coisa importante na hora de escolher um livro que fale sobre luto é que as reações e os sentimentos dos personagens devem aparecer na narrativa, porque isso pode ajudar a criança a se sentir mais acolhida ao identificar que sente o mesmo que aquela personagem. Também precisamos prestar atenção para que o conflito da história seja resolvido de alguma forma. Lucélia: Não precisa ser o “viveram felizes para sempre”. Mas que haja uma solução, porque, quando existem problemas não solucionados, isso pode trazer uma confusão para a criança. Então, nas histórias sobre morte, por exemplo, é importante não que a saída, que a solução, seja que essa pessoa voltou, porque não vai voltar, mas que o personagem seja amparado, que o personagem consiga se reestruturar na vida, tenha proteção, não fique sozinho nessa solidão, que ele tenha um final, um desfecho, que seja acolhedor e verdadeiro. Mayra: Conversando com a Lucélia, a gente percebeu que o livro sozinho não basta. Antes de usar uma história como um recurso para trabalhar um assunto específico, é importante que o adulto conheça bem essa história, para acolher quaisquer falas, intervenções e dúvidas que as crianças possam trazer. Para além da escolha das histórias, tem um aspecto do luto que às vezes a gente nem se dá conta: que o luto não aparece apenas com a morte de uma pessoa querida, mas também com diversas outras perdas que acontecem nas nossas vidas, como reforçou a nossa entrevistada. E é importante a gente acolher a criança também quando ela passa por esses lutos simbólicos, esses lutos não relacionados com a morte. Agora, e quando a gente precisa dar uma notícia de morte para uma criança? Como começar a conversa e o que a gente pode fazer depois? Lucélia: Falar para uma criança que o vovô foi viajar, que o vovô partiu, isso não é legal. Por quê? Por que o vovô foi viajar e nunca mais voltou? Vovô partiu e não falou comigo? Não se despediu de mim? Não me levou junto e nunca mais vai voltar? Onde está meu avô? Por que é que ele saiu? Por que é que ele foi embora? Isso causa conflitos, confusões, na cabecinha da criança. E ela muitas vezes pode se sentir culpada pelo fato do sumiço desse avô, por exemplo. Então, é importante que a gente sempre fale a verdade de forma clara, de forma objetiva. Mayra: Falar de forma clara não quer dizer que essa conversa tem que ser fria ou distante. No momento da conversa, é papel do adulto criar um ambiente em que a criança se sinta acolhida, segura, sinta que ela vai continuar sendo protegida e sendo cuidada. Além disso, a gente tem que dar espaço para a criança expressar o que está sentindo, que, como a gente viu, não precisa ser só tristeza, né? Existem várias formas de vivenciar o luto. Outra coisa muito importante é que a criança se sinta confortável para tirar suas dúvidas, até porque entender a morte não é uma coisa simples… Lucélia: Para que a criança possa entender o que é a morte, é necessário que ela compreenda, assimile, três atributos básicos. Mayra: O primeiro deles é a universalidade ou inevitabilidade. Lucélia: A criança precisa entender que todo ser vivo vai morrer um dia. Seja a plantinha, seja o animalzinho de estimação, a vovó, o vovô, o papai, o amiguinho. E até ela mesma. Mayra: O segundo é a irreversibilidade. Lucélia: A criança precisa entender que quem morre não volta mais. Morreu, morreu. Não dá para morrer só um pouquinho. Não dá para desmorrer, né? Mayra: E o último é a não funcionalidade. Lucélia: Aquela pessoa que morreu, aquele corpo, para de funcionar; ou seja, a pessoa para de respirar, aquele coração para de bater, a pessoa que morreu não sente mais fome, nem frio, nem dor. Então, a criança precisa entender que todo mundo vai morrer um dia, isso é fato, que quem morre não volta mais e que, quando se morre, o corpo para de funcionar. Mayra: Pelo próprio processo do desenvolvimento infantil, a compreensão desses três aspectos e do próprio conceito de morte acontece por volta dos cinco, seis, sete anos… Mas isso não é uma coisa precisa, depende de vários aspectos cognitivos, emocionais e sociais. Por isso que é importante falar da morte de forma clara com as crianças. As dificuldades para a compreensão do que acontece, as confusões, podem até atrapalhar o processo de luto. A Lucélia defende, inclusive, que a morte seja um assunto presente no cotidiano das crianças, em diferentes contextos, na comunidade, na família, na saúde, nas escolas… Lucélia: A gente não precisa passar por uma perda por morte para falar sobre morte. Não precisa ser a partir de uma perda, pela tristeza. A gente pode trazer a morte no nosso cotidiano. Mayra: Ela pode ser tratada com humor, com amor, não só com tristeza… Lucélia: É que é um tema que os próprios adultos têm dificuldade de abordar, né? E por isso as crianças ficam sem esse respaldo, porque nós, adultos, não abordamos, pela nossa dificuldade. Só que agora, com a pandemia, parece que, assim, tudo mudou. A morte está escancarada, presente cotidianamente, assustando a todos, adultos e crianças. Então, ela passou a ser um assunto mais do que necessário. Sempre foi! Mas agora está escancarado, né? Mayra: É muito importante que, nas escolas, as crianças possam conversar sobre as perdas que tiveram durante a pandemia. Algumas sofreram perdas por mortes, mas todas perderam a liberdade, perderam a escola por um bom tempo, perderam o convívio com os colegas e com os professores… Então, isso pode e deve ser abordado no ambiente escolar. Mas não é só a partir dessa situação da pandemia que a morte deve estar presente na escola. Ela pode ser tratada em estudos sobre o funcionamento da vida como um todo. Se a gente faz experiências para acompanhar o nascimento e o crescimento de um feijãozinho, por exemplo, a gente também deveria acompanhar a sua morte, já que esse é um processo natural. Lucélia: É uma oportunidade de se falar sobre a morte. Por que, quando se fala sobre esse desenvolvimento todo, se aprimora os conhecimentos, não se fala sobre a morte? É importante que isso seja dito, de uma forma fluida, de uma forma natural, como algo que faz parte da vida, como algo que faz parte do ciclo do desenvolvimento humano. Mayra: A psicóloga salienta que um dos receios de se falar sobre esse assunto na escola é porque o tema pode acabar envolvendo religião, e cada família tem a sua crença, e cada crença um modo de lidar e tratar da morte. Não existe uma necessidade de falar da morte do ponto de vista religioso. Como a gente já viu, a morte envolve vários aspectos que podem ser tratados até do ponto de vista da ciência, mas é possível, sim, envolver questões relacionadas à religião na conversa… Lucélia: Por que não dizer sobre as várias ópticas de cada religião? Como cada religião vê a morte, como cada religião lida com esse momento, com esse processo, os rituais, né? Mayra: Inclusive, a Lucélia destacou a importância desses rituais, não só os rituais religiosos, mas os rituais de despedida de uma forma geral. Eles são eventos organizadores, que ajudam a gente a concretizar essa nova mensagem, de que aquele ser morreu. E é importante que a criança aprenda a ter responsabilidades e cuidados, inclusive afetivos, na hora da morte também. Por exemplo, na hora da morte de um bichinho de estimação, é importante que a criança possa se despedir dele, preparar um enterro, organizar um fim para o animalzinho. Também não é uma boa ideia querer substituir o animal… Lucélia: Substituir não é a melhor coisa. Por quê? Porque cada um é único, e o afeto é dirigido a cada ser. Então, é importante que se lide com a falta dessa figura de afeto também, que se possa se despedir. Se você substitui um animalzinho, você pode estar mostrando para a criança uma mensagem de que todo afeto pode ser substituído, e o afeto não é substituído. Você pode ter vários afetos, cada afeto é único. Mayra: Apesar de tudo que a gente viu até aqui, a gente sabe que pode ser difícil trazer esse assunto para as crianças. O Diogo conversou com a Maria Júlia Kovács para saber um pouco mais dos cuidados que a gente precisa ter ao lidar com o luto das crianças. Diogo: Como a morte pode ser um tema sensível até mesmo para os adultos, pode ficar a sensação de que, evitando esse assunto, a gente estaria, de alguma forma, protegendo as crianças de um momento difícil. Maria Júlia: Mas isso não é verdade, porque, se uma morte ocorre dentro do núcleo familiar, ela vai perceber que está tendo alterações, que as situações estão difíceis e não vai entender o que está acontecendo. Então, ao invés de poupar do sofrimento, a gente acaba aumentando, criando incerteza. Diogo: Essa é a Maria Júlia Kovács. Inclusive, ela foi a orientadora da Lucélia no doutorado dela. Bom, a Maria Júlia tem feito pesquisas na área da Tanatologia, os estudos da morte e do morrer. O nome dessa área vem de Thanatos, que, na mitologia grega, é o deus da morte. Dentro dessa área, a Maria Júlia tem pesquisas sobre temas variados, como educação para a morte, bioética e morte com dignidade. Aqui no episódio, a gente conversou com ela sobre o tabu relacionado ao tema da morte, principalmente com relação às crianças. Maria Júlia: Fato é que hoje isso talvez seja mais tabu do que em outros tempos. Diogo: Isso de afastar a criança quando alguém morre é uma coisa meio recente. Antes de os hospitais se popularizarem, era comum aguardar pelo momento da morte em casa, e as crianças participavam desse ritual junto com os adultos. Maria Júlia: Mortes que acontecem em casa ou de familiares que incluem as crianças nas atividades, quando uma pessoa adoece, ela visita, enfim, elas vão acompanhando o processo. Diogo: Essa conversa com a Maria Júlia foi gravada no ano passado, perto do dia de Finados, e ela reforçou a importância dessa data e também da participação da criança no ritual funerário. Maria Júlia: É um momento importante para informar, esclarecer para as crianças sobre por que existe um dia especial para venerar os mortos, o que isso significa, por que é que existem os cemitérios… Então que as crianças possam, sim, participar dos rituais funerários. Isso é muito importante, primeiro porque ela é um membro da família, porque os rituais ajudam a compreender o que está acontecendo, a encontrar apoio, acolhida. Diogo: Assim como a Lucélia, a Maria Júlia destacou o impacto da pandemia de COVID-19 na vida das crianças. Isso, de certa forma, aproximou a morte do cotidiano delas. Só no Brasil, a COVID deixou 113 mil crianças órfãs, segundo uma matéria publicada em setembro de 2021 pela revista “Pesquisa”, da Fapesp. E mesmo uma criança que não perdeu alguém próximo acabou tendo contato com a palavra “morte” quase todo dia, nem que fosse na TV ou no comentário de uma pessoa próxima a ela, por exemplo. Maria Júlia: Também nós tivemos agora, por conta dos períodos agudos da pandemia, muitas crianças que perderam pessoas queridas, sejam avós, sejam pai, mãe ou irmãos ou tios, né? Então elas talvez estejam vivendo as suas primeiras experiências de luto, e é muito importante falar sobre isso. Diogo: Então, é importante a gente incluir a criança nos rituais de despedida e também conversar com ela sobre as perdas. Além disso, é importante que o adulto possa ajudar a criança a entender que, mesmo que a pessoa que morreu não esteja mais presente fisicamente na vida dela, isso não quer dizer que o laço afetivo entre elas se rompeu completamente. Maria Júlia: O melhor é poder explicar para a criança, principalmente, assim, que ela não vai ver mais essa pessoa, mas ela não vai esquecer essa pessoa, principalmente se alguém muito próximo da família ou até um bicho de estimação. E dizer que não vai estar mais presente na vida, no cotidiano, mas vai ficar na alma, no coração, nas memórias. Diogo: Do mesmo jeito que o jabuti vai guardar sempre com ele a lembrança de uma siriruia de asa torta, a gente guarda uma pessoa especial na forma de memória, mesmo quando essa pessoa já morreu. Maria Júlia: O valor das lembranças é muito grande. Então, a gente pensa assim, quando ocorre a morte, quebra-se o vínculo presencial, mas não o vínculo afetivo, não a relação amorosa, que ela continua e agora vai encontrar outros caminhos, né? Os caminhos das memórias, das lembranças… Então, é muito importante a gente poder falar dessas lembranças, compartilhar essas lembranças. Elas ajudam, elas podem trazer sentimentos variados, tristeza, medo, raiva, amor. Boas lembranças, saudades, então tudo isso é importante. E que isso seja cultivado, porque é uma maneira de a gente ter a pessoa sempre próxima de nós. Diogo: Bom, nesse episódio, a gente conheceu o livro do jabuti e da siriruia, aprendeu um pouco sobre a biblioterapia e também sobre alguns aspectos importantes de como falar da morte com as crianças. A gente também conversou sobre a importância de não evitar esse assunto, mas sim falar dele de uma forma honesta e acolhedora. Aqui, a gente só começou uma conversa sobre esse tema. Se você quiser saber mais sobre esse assunto, tem a tese da Lucélia, que foi publicada no formato de um livro, que se chama “A arte de falar da morte para crianças: a literatura infantil como recurso para abordar a morte com crianças e educadores”. Além disso, tem o site do Laboratório de Estudos Sobre a Morte, do Instituto de Psicologia da USP. Como a gente viu, a Maria Júlia foi uma das pessoas responsáveis pela fundação desse laboratório. No site dele, tem muito material legal, como recomendações de leituras (inclusive de livros para crianças) e de filmes relacionados a esse tema. As referências de tudo que a gente mencionou nesse episódio estão na descrição dele no site do Oxigênio. O que você achou desse episódio? Deixa um comentário. A gente está no Instagram e no Twitter também, é só procurar por “Oxigênio Podcast”. E compartilha esse episódio com seus amigos, principalmente com aqueles que têm contato com crianças. O roteiro e a narração desse episódio foram feitos por mim, Diogo Ambiel Facini, pela Laís Toledo e pela Mayra Trinca. A leitura dos trechos do livro do jabuti e da siriruia foi feita pela Lina. Gustavo Campos fez os trabalhos técnicos do episódio, junto com o Octávio Augusto, da rádio Unicamp. A revisão do roteiro e a coordenação do Oxigênio são da professora Simone Pallone, do Labjor/Unicamp. Tchau! Referências: Livros escritos pela Márcia Abreu para crianças e jovens: “Amor, história e luta: antologia de folhetos de cordel”. Editora Moderna (2005). “Morrer amanhã”. FTD Educação, coleção “Meu amigo escritor” (2008). “Da cor da esperança”. Editora Moderna, coleção “Recontando a História” (2016). “Vovô Gagá”. Editora Moderna (2015). “O Jabuti e a Siriruia: o ciclo da vida”. Editora UFMG, selo Estraladabão (2021). “O direito à literatura”, do Antonio Candido (1988). Incluído no livro “Vários Escritos”, da editora Ouro sobre Azul. “Sete livros infantis que falam da morte”, blog Marca Páginas: https://www.blogs.unicamp.br/marcapaginas/2022/01/28/sete-livros-infantis-que-falam-da-morte/ Site da Lucélia Elizabeth Paiva: https://www.luceliapaiva.com/home Livro da Lucélia: “A arte de falar da morte para crianças: a literatura infantil como recurso para abordar a morte com crianças e educadores”. Editora Ideias & Letras (2011). Site do Laboratório de Estudos sobre a Morte (LEM/IP-USP): http://www.lemipusp.com.br/ Matéria “Desamparo disseminado”, da revista “Pesquisa”, da FAPESP: https://revistapesquisa.fapesp.br/desamparo-disseminado/ Créditos de som: “Min” “Building the Sled” “Lemon and Melon” “Minutes” “Slimheart” “Tarte Tatin” “Zulia Conspiracy” “The Caspian Sea” “Two Pound” “Our Lament” “Palms Down” Todos do Blue Dot Studios (https://www.sessions.blue/) Agradecemos à Bruna Alves Schievano, que é psicóloga e contribuiu para o episódio com recomendações de leituras.
35 minutes | Feb 3, 2022
#138 – Anorexia nervosa, gordofobia e redes sociais
O primeiro episódio de 2022 trata de um tema de extrema relevância na sociedade, que é a anorexia nervosa. Associamos a essa doença que atinge uma grande parte das pessoas, e que decorre, principalmente por questões emocionais, à gordofobia, o preconceito ao corpo gordo que pode ser um dos gatilhos para levar à anorexia e outros transtornos alimentares. Esses problemas não são novos, mas têm sido reforçados pelo acesso às redes sociais, que propiciam as relações e a exposição das dificuldades com o corpo, das dicas de como disfarçar a anorexia, do apoio para permanecer na doença. Mas por outro lado, as redes sociais também têm colaborado para ampliar movimentos de aceitação do corpo e para apoiar as pessoas que desejam se tratar. O episódio foi produzido por Rafaela Repasch, pelo Rafael Revadam, que são os apresentadores, e também pela Camille Bropp. A Rafaella é também a produtora da animação Eiva, que foi o mote para a realização do programa e que está disponível no YouTube. Roteiro: Trecho 1  do curta metragem “Eiva”: “Querido Diário, recebi você da minha terapeuta dias depois de quase morrer. Foram tempos muito difíceis, por isso tenho que dizer… Faz algum tempo já vinha me sentindo pra baixo, me sentia feia e estranha, triste e sozinha… Meus pais criticavam o meu corpo, o que piorava tudo.” Rafaela Repasch:  Eu sou a Rafaela Repasch, animadora 2D e o trecho de abertura do episódio faz parte do curta-metragem em desenho animado chamado Eiva, feito por mim, com o tema anorexia nervosa. O curta conta a história de uma menina-coelha, chamada Eiva, palavra que significa fenda ou rachadura em vidro. Na história / a menina enfrenta o bullying, web bullying, a perda de sua amiga, e ainda a pressão dos pais e da sociedade por não aceitarem seu corpo gordo. Logo ela entra em um ciclo vicioso de não comer, tomar remédios para emagrecer, exercícios frequentes e vomitar // ações que a levam para uma internação hospitalar. Rafael Revadam: Os transtornos alimentares são condições graves relacionadas a comportamentos alimentares persistentes que afetam negativamente a nossa saúde e as nossas emoções. Os distúrbios mais comuns são anorexia nervosa, bulimia, compulsão alimentar, transtorno alimentar restritivo evitativo e vigorexia. Esses distúrbios são desencadeados por uma série de fatores associados à depressão ou à ansiedade.  No caso da Anorexia nervosa, por exemplo, ela acontece quando há uma preocupação exagerada com o próprio peso. A pessoa se olha no espelho e, embora esteja extremamente magra, se enxerga obesa. Com medo de engordar ainda mais, exagera na atividade física, faz jejum, vomita, toma laxantes e diuréticos. E esse processo pode causar danos fĩsicos muito graves. Rafaela: Uma das preocupações dos profissionais da saúde que lidam com pacientes afetados com a doença, é que boa parte deles são muito jovens. De acordo com a pesquisa ANOREXIA E BULIMIA EM ADOLESCENTES, realizada pela psicóloga Paula Virgínia de Carvalho, da Universidade Federal do Maranhão, em 2008, 14% dos adolescentes entrevistados apresentaram sintomas de anorexia, menos de 1 por cento de bulimia e 2% de anorexia combinada com bulimia. A pesquisadora verificou que 15% dos adolescentes tinham uma conduta alimentar não usual, com comportamentos de risco para o desenvolvimento de transtornos alimentares.  Rafael: Hoje é possível observar tanto um aumento no número de transtornos alimentares como também no número de vítimas. Esse processo fez com que o Congresso Brasileiro de Psiquiatria, que aconteceu no Rio de Janeiro em abril de 2021, criasse uma sessão especial para discutir as diferentes formas desse problema se manifestar. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 4,7% dos brasileiros sofrem de distúrbios alimentares, no entanto, na adolescência, esse índice chega a 10%. Eu sou RAFAEL REVADAM, e no episódio de hoje, o primeiro do ano, vamos falar sobre a luta contra a anorexia nervosa e a gordofobia, tão presentes na nossa sociedade. Vamos tratar também da influência das redes sociais na pressão por um corpo perfeito, e como as redes de apoio com familiares e amigos são essenciais para vencer esse cenário. [Vinheta do oxigênio] Rafaela: Comer é um dos prazeres da vida, mas quando a ingestão de alimentos vira uma questão de preocupação intensa, o que deveria ser prazeroso se torna um pesadelo, que pode interferir diretamente na saúde física e mental do indivíduo.  Bianca Barroca: Quando eu era mais nova, por ser de uma família de pessoas gordas existia sempre essa ameaça: “Bianca você não pode engordar! Você vê que fulano não tem namorada? O Sicrano não consegue nem emprego. Você tem que continuar magra pra sempre.” E isso ficava na minha cabeça, então a minha rotina era voltada para continuar sendo magra, com dietas completamente restritivas. Eu parei de comer arroz e feijão com doze, treze anos de idade, porque aquilo era mostrado pra mim como um veneno. Eu via no arroz e feijão uma coisa que ia me afastar de relacionamentos, que ia me impedir de ter emprego, que ia me fazer ser vista de uma maneira que eu não queria. Eu fazia cinco horas de exercício por dia durante a semana e de final de semana passava de dez horas, tudo para continuar sendo magra. Rafael: Bianca Barroca é uma influenciadora nas redes sociais e criadora de conteúdo digital, que fala principalmente sobre o movimento corpo livre e gordofobia. Ela compartilha sua vivência como pessoa gorda.  Rafaela: Quem também conversou com a gente neste episódio foi o Raphael Cangelli Filho. Ele é psicólogo clínico e atua no AMBULIM Programa de Transtornos Alimentares, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Usp. E ele reforça o que disse a Bianca.  Raphael Cangelli Filho: O paciente com anorexia, têm um medo exagerado de ganhar peso. Esse medo é o que prevalece durante todo tempo que essa doença está em pauta, enquanto o paciente está com anorexia. Na crise, o medo de ganhar peso é muito grande. Uma baixa autoestima e um relacionamento geralmente conflituoso com família e com pessoas queridas. E a bulimia tem também um medo de ganhar peso, mas ele não é tão exagerado. Anorexia tem também uma insatisfação com a imagem corporal e uma distorção muito grande da imagem corporal.  Rafael: Perguntamos para o Raphael qual é a diferença entre a insatisfação com o corpo e a distorção. Raphael Cangelli Filho: Quando a gente fala em satisfação é não gostar de como aquele corpo é. A distorção é imaginar esse corpo com uma outra forma, de um outro jeito e geralmente muito maior do que de fato ele é. Então essa distorção de imagem corporal é muito grande na anorexia. A gente tem na bulimia o comportamento de uma compulsão alimentar, um comer exagerado e depois ter medo de ganhar peso com essa alimentação, com essa ingestão alimentar, ela vai provocar uma purgação, seja por vômitos, exercícios exagerados, ou uso de laxantes e diuréticos, enfim, ela vai usar algum método purgativo pra eliminar isso que ela ingeriu e imaginando que com isso ela perca peso, decorrente daquela alimentação exagerada que ela fez. A anorexia, por outro lado, é mais constante. O paciente passa por grandes intervalos de tempo sem comer absolutamente nada ou comendo uma quantidade muito pequena de alimento. E só o tipo purgativa, é que tem os comportamentos purgativos, mas a restrição prevalece. Rafaela: Mas como reconhecer os sintomas? O psicólogo aponta que é difícil mas  necessário perceber alguns comportamentos de risco. Tanto o paciente quanto a família e pessoas próximas, devem tentar identificar os sinais, como um olhar constante ao espelho, a diminuição da comida ingerida ou uma restrição muito grande do que vai comer. Raphael Cangelli Filho: A importância que esse paciente dá à imagem corporal, as conversas sobre o peso corporal, então é como se a pessoa ficasse totalmente voltada e focada na questão do corpo, do peso, a importância dela ela chega até a perder interesse pelas questões sociais, porque ela não vai a um encontro de um grupo de amigos, porque provavelmente o grupo combina de se encontrar num bar, num boteco ou num restaurante e aí lá vai rolar uma bebida, vai rolar um alimento, vai rolar um petisco, então pra que esse paciente não se exponha a essa situação e não fique envergonhado por não comer então ele essa pessoa evita esse contato social né? Então ela vai se isolando, cada vez mais fechada em seu próprio habitat e deixando os relacionamentos pra fora da sua vida. Rafael: A dificuldade para identificar ou diagnosticar o transtorno alimentar está na sutileza dos sintomas e o fato desses sintomas serem relacionados erroneamente a um estilo de vida e não a uma doença. O próprio paciente pode resistir a reconhecer que as alterações de comportamento não são apenas um novo jeito de lidar com seu corpo. Raphael Cangelli Filho: Isso a gente ouve  muito de um paciente com transtorno alimentar: “Eu como pouco, porque é um estilo de vida. É legal comer menos, é legal comer adequadamente, comer sem carboidrato”, então ela aparece disfarçada, então é difícil uma pessoa até bem próxima reconhecer isso como uma doença, do comportamento como sendo sintomas de uma doença. Às vezes esse paciente, até chega a ir num médico, mas ele vai num clínico geral, ele depois vai num gastro, porque ele começa a ter crises de gastrite, dores abdominais e se o médico não tem um olhar mais apurado, voltado a reconhecer os sintomas e transtornos alimentares, ele vai cuidar da dieta dessa pessoa, desse paciente e provavelmente uma dieta até mais restritiva do que já é. Reconhecer as dores como decorrente de uma gastrite, de uma infecção estomacal e não decorrente de questões da anorexia, como sintomas da anorexia. Então assim, pro próprio paciente é difícil ele se cair a ficha ele reconhecer que ele tem um uma doença, que é necessário um trabalho, um tratamento multidisciplinar e pra família também precisa estar muito atenta a isso e reconhecer esses sintomas e perceber como doença e não como estilo de vida. Rafaela: Raphael comenta também outro fator importante de influência na imagem corporal e que pode levar à anorexia nervosa. A pressão midiática, que intensifica a insatisfação com o corpo, além da cultura em que vivemos, onde beleza é magreza. Raphael Cangelli Filho: Então as pessoas, os pacientes com anorexia fazendo uma correlação que a beleza tem que vir da magreza, que leva ao sucesso profissional e pessoal, afetivo. A aceitação decorre de tudo isso, mas não é o único gatilho, não é a única pressão, não é só por isso, tem outros fatores que vão fazer com que uma pessoa inicie um transtorno de anorexia ou transtorno de alimentação. Rafael: Bianca têm a mesma visão que o psicólogo e conta como essa pressão da mídia influenciou a relação com o próprio corpo. Bianca Barroca: A primeira coisa que eu aprendi foi a não gostar do meu corpo. Todas as referências que eu tinha de corpos bonitos eram as referências da mídia, final dos anos noventa e começo dos anos dois mil. A febre da cintura é baixa, dos ossinhos apareceram no quadril. Uma cultura, pois ali na época que o padrão de beleza era o padrão modelo, quando se falava em Gisele, era quando se falava em todas essas supermodelos que eram pagas e era exigido de uma forma super abusiva que elas fossem magras.  Foi isso que eu aprendi que era ser bonita. Então, recentemente eu estava mexendo numa caixa de fotos antigas e eu encontrei uma foto minha com três ou quatro anos de idade murchando a barriga para parecer ser mais magra na foto. Fazia e faz parte da nossa cultura, a família falando pra você que seu corpo não é bom o suficiente, está na nossa sociedade. Trecho 2 do curta metragem “Eiva”. “Foi aí que decidi mudar, mas com certeza não foi uma boa escolha… Não comer, exercício, remédio, vomitar, feia Não comer, exercício, remédio, vomitar, feia Não comer, exercício, remédio, vomitar, feia Não comer, exercício, remédio, vomitar, feia”.  Rafaela: Para entender de onde veio a cultura da magreza, é necessário voltar para a Antiguidade Clássica e entender a concepção de belo para os gregos. A beleza, para eles, era sinônimo de perfeição e a perfeição era baseada na simetria corporal e na naturalidade. A partir daí o corpo bonito se torna inteiramente ligado à imagem, apenas com o viés estético. Com o passar do tempo, o estímulo à magreza ficou presente nos meios de comunicação, especialmente na publicidade, mas também no cinema, nas novelas, no jornalismo. E a internet ampliou ainda mais a exposição de corpos magros como modelo de beleza. Ela também possibilitou a aproximação de pessoas com interesses em comum, em grupos, como no Facebook, depois no Instagram e outras plataformas.  Rafael: Depois vieram os meios de trocas de mensagens, como WhatsApp e Telegram, em conversas que não podem ser acessadas. Falamos sobre isso com a  Cristina Oliveira dos Santos, que é jornalista e desenvolveu uma dissertação no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Espírito Santo (UFES), em 2016, sobre o comportamento pró-anorexia, principalmente em grupos de WhatsApp. Foram cerca de dez grupos analisados, com pessoas entre 10 a 35 anos. Perguntamos para a Cristina se de alguma forma ela percebeu que os grupos ajudam esses tipos de distúrbios a ficarem mais escondidos. Cristina Oliveira dos Santos: Com certeza, esse espaço dos grupos principalmente do WhatsApp, que não tem diretrizes tão rígidas como Instagram e Facebook. Lá é o espaço que elas se sentem acolhidas, uma dá estímulo mesmo para outra participante para elas poderem juntas serem quem elas realmente querem ser. Então, embora as comunidades os grupos, né no caso de Facebook, eles tentam bloquear essa interação entre as participantes porque anorexia e bulimia são temas extremamente proibidos no Facebook, ele já baniu e por ser dona do Instagram o Instagram também, os outros grupos mais fechados como WhatsApp não tem essa política então lá elas podem mesmo dar força uma para outra elas podem interagir as podem juntas chegarem ao objetivo ideal que a magreza excessiva elas serem vistas serem apreciadas e uma coisa muito interessante também que elas saíram do Instagram até porque como Instagram começar a bloquear elas foram para o WhatsApp, ele era visto como uma forma de delas poderem ganhar o corpo ideal era como se fosse uma escadinha fazer um subida degrau por degrau para ganhar o corpo. e assim voltar  para o Instagram, porque lá no Instagram é uma forma que elas poderiam se expor, ganhar muitos likes que elas tinham muita coisa com isso de ganhar likes para elas era o máximo. Toda vez que elas colocavam um corpo lá magro e do castigo era perdido peso na semana colocava uma foto delas lá o estímulo delas a felicidade delas era medida pela quantidade de likes que elas recebiam. Então se elas recebessem poucos likes é por causa que não tinham emagrecido. Rafaela: A influencer Bianca explica que lidar com as redes sociais não é fácil, mas hoje encontra mais apoio do que ódio. Bianca Barroca: No final do dia todo hate que acontece quando os meus assuntos eles furam a bolha, eles atingem pessoas que nunca ouviram falar sobre isso. Então, sim, é muito desagradável receber hate. É desagradável ouvir pessoas te atacando sem nem te conhecer e às vezes engatilhando coisas muito íntimas. Porque a autoestima de ninguém é inabalável. Tem um momento que vou ficar triste. Mas ao mesmo tempo que isso acontece existe um lado bom de furar a bolha. Então pessoas que nunca ouviram falar naquele assunto, talvez  elas nem concordam em primeira. Então, no TikTok acontece muito isso, os seguidores que são mais novos eles veem aquilo e eles pensam, “Poxa, é isso que eu precisava pra melhorar um pouco o meu dia, eu lavei bullying no colégio, mas agora eu tô em casa olhando isso aqui, tem gente que é como eu e tá feliz e se sente bem”, então esse período vai ser um pouco difícil, mas um dia vai melhorar. É trazer um pouco de esperança pra pessoa que nunca ouviu falar no assunto. Rafael:: Há uma dificuldade de aceitar que as redes sociais tenham algum papel na multiplicação e disseminação desse pensamento anoréxico, que só expõe uma coisa que antes ficava oculta na sociedade. Rafaela: Em 2021 o Pinterest, rede social que é focada em buscas de inspirações, como looks, desenhos, fotos, atualizou sua política em uma tentativa de evitar o dito “padrão de corpo perfeito”. E essas novas regras também proíbem idealização ou depreciação de certos tipos de corpos. Foi a primeira rede a banir a veiculação deste tipo de conteúdo para usuários e convidou outros serviços a adotarem a medida. Mas, segundo a explicação da Cristina, esse bloqueio nas redes ainda é muito falho. Cristina Oliveira dos Santos: Olha eu não acho que sejam regras que sejam suficientes. Facebook tá um pouco mais desativado nessas áreas, porque o Facebook está sendo visto muito como rede social, onde tá a tia os da mãe, então as pessoas mais jovens. Elas começaram a usar mais um Instagram mesmo. Elas mudam muito as hashtags, elas colocam dois eles (LL) colocam dois pês (PP), colocam números. Porque o Instagram colocou uma política um pouco mais rígida para não sei se você tem acompanhado, você não pode escrever certas palavras. Pode ser morte, assassinato. Então as pessoas estão usando números, né para substituir algumas letras e assim como antes. O Instagram bloqueia a foto se a menina mostrar os mamilos mas ele não vai bloquear foto de uma menina muito magra A não ser que esteja na legenda Ah eu tenho anorexia. Rafael: É importante entender que não apenas as redes sociais ou influencers fitness são gatilhos para essa doença psicológica que atinge tantas pessoas. Raphael explica melhor essa questão. Raphael Cangelli Filho: Pacientes com anorexia em um conflito familiar, pais muito severos, triangulações familiares, a gente encontra não só na mídia, então tem outros fatores esses familiares, sociais, preconceituosos. Na anorexia outros gatilhos além das redes e da mídia, que vão decorrer para uma anorexia. O fato de uma pessoa não saber como expressar, trabalhar, não saber digerir um sentimento, uma emoção e resolver isso na alimentação. Eu não consigo expressar a minha raiva e o que eu faço, me punir por conta de não saber expressar isso. Então eu volto a raiva pra mim, ao invés de expressá-la pro outro. Então eu faço uma restrição, mesmo uma compulsão porque eu vou jogar na alimentação o sentimento que eu tenho e que não sei lidar com ele.  Rafaela: Cristina explica esse conflito por outra perspectiva interna na qual meninas e mulheres negam o amadurecimento do corpo. No caso das meninas, elas querem se afastar ao máximo da imagem da mãe na vida adulta. Elas não querem ter os seios grandes, quadril mais largo, nem uma barriguinha.  Rafael: A gordofobia é a discriminação, opressão, a inferiorização, a repulsa e o sentimento de raiva para com um corpo gordo. A sociedade estampa cotidianamente essa opressão em restaurantes, transportes públicos e até em hospitais. Como consequência, as pessoas podem desenvolver distúrbios alimentares. Bianca exemplifica como foi essa reação da sociedade com ela perante sua mudança corporal. Bianca Barroca: Eu aprendi que eu era melhor que os outros, então eu agia se eu fosse melhor que os outros, simplesmente porque eu tinha um corpo magro, não que todas as pessoas magras agem assim, mas eu no caso agia. E aí quando eu comecei a engordar, eu procurei outros artifícios para garantir que as pessoas gostassem de mim, porque eu sabia que só pela minha aparência as pessoas não iam gostar. Então, eu comecei a ser vista de uma forma, por exemplo, no trabalho, como se eu fosse desleixada, as pessoas sempre se sentiam numa necessidade me dar “dicas” sobre roupas que eu vão esconder a minha gordurinha, sobre o que poderia levantar um pouco o meu peito ou então várias coisas pra corrigir a minha maneira de me mostrar pra sociedade, porque eu sendo uma pessoa gorda e vivendo livremente não era o suficiente, eu não estava adequada às normas. Eu acho que a minha autonomia, a minha liberdade foi um pouco desrespeitada pelas pessoas, porque todo mundo se sentiam no direito de opinar. Rafaela: é importante citar que enquanto se tenta padronizar um estilo de corpo, pessoas que não se encaixam nesse padrão começaram a denunciar tal violência, incentivando a valorização de todos os tipos de corpos. Exemplos disso são os movimentos Body Positive e Corpo Livre, do qual a Bianca faz parte. Bianca Barroca: Eu acho que existe um crescimento muito bom. Esse assunto é muito mais aceito. Do que quando comecei a ouvir falar sobre isso, em dois mil e quinze, dois mil e dezesseis. Hoje em dia é muito diferente. Existe uma intenção do capitalismo de se apropriar de algumas situações para lucrar. Então, obviamente estão percebendo que pessoas gordas consomem, se tiver uma roupa da moda uma roupa que todo mundo está usando, se quiserem comprar uma ideia de vão ter mulheres gordas, pessoas gordas pra comprar. Então, existe esse movimento capitalista. Mas, ao mesmo tempo que isso acontece, eu também vejo pessoas que eu sempre vi no meu dia a dia, meus amigos, na minha família, pessoas que se sentiam desconfortáveis com o próprio corpo e iniciaram pensamentos diferentes sobre isso. O que a gente precisa atentar sempre é entender que o movimento corpo livre ele é sobre a aceitação mas ele é aplicação de todos os corpos, é a aceitação dos corpos de pessoas com deficiência, é aceitação de pessoas gordas maiores que são as invisibilizadas nessa discussão. É Corpo Livre pra todo mundo e quando a gente fala sobre se sentir bem a gente tem que pensar nessa realidade de outras pessoas e fazer com que esses discursos sejam positivos pra todo mundo. Rafael:  Esses movimentos também buscam valorizar outros tipos de corpos que também sofrem preconceito na sociedade, como é o caso dos corpos trans e de pessoas com deficiência. Mas além de atitudes da população, ações governamentais são fundamentais para incluir e acolher a todos.  Bianca Barroca: A gente pode criar uma lei falando que ser gordofóbico é crime, mas se as pessoas não sabem o que é ser gordofóbico essa lei funciona, essa lei vale de alguma coisa? Tem que ser as duas coisas acontecendo. Existem políticas públicas que seriam muito proveitosas nesse caso. Falando mais especificamente sobre a anti gordofobia, a gente pode pensar no atendimento médico principalmente é você vai em em alguns hospitais a pessoa gorda, que é aquela pessoa que todo mundo está falando que está preocupado com a saúde, então essa pessoa que tem a saúde cobrada basicamente todos os dias, quando ela vai procurar ter acesso a saúde muitas vezes esse acesso a saúde é negado você vai no hospital a cadeira do hospital machuca, ou então o aparelho de ressonância não é grande o suficiente, existem pessoas gordas que precisam fazer ressonância em clínicas veterinárias. Macas, que não suportam o peso de pessoas gordas quando você vai num hospital normalmente, onde eles tem essas macas que suportam o peso de uma pessoa gorda maior é na ala para fazer cirurgia bariátrica. A pessoa gorda é bem recebida no hospital só se ela procurar emagrecer, isso é de um desrespeito gigantesco e isso afasta sim pessoas gordas da saúde. Rafaela: Falando em saúde, voltamos ao Raphael e ao tema central do episódio. O psicólogo detalha um pouco sobre o tratamento de quem convive com a anorexia, e como é fundamental que toda a família se envolva no processo para o paciente não lutar sozinho. Raphael Cangelli Filho:  A maneira mais pesquisada e mais positiva e que tem mais sucesso ao tratamento, um bom prognóstico é quando a família adere ao tratamento. Sem que a família faça parte do tratamento o paciente está lutando sozinho. A gente costuma trazer para o tratamento não só pai e mãe, mas pai, mãe, todas as pessoas da família que convivem com aquele com transtorno alimentar. Então quanto mais pessoas desta rede seja familiar ou social inseridas trazidas pro tratamento mais ajuda esse paciente terá. Rafael: É muito importante ressaltar para as pessoas que a anorexia não tem uma cura, mas que existe sim um tratamento. E essa saída tem algumas necessidades fundamentais, como explica Raphael.  Raphael Cangelli Filho: O que a gente precisa para um tratamento de sucesso, um bom prognóstico a gente precisa de uma equipe que tenha médico psiquiatra, nutricionista comportamental, psicólogo individual e terapeuta familiar. Hoje no hospital, no ambulatório nós temos além desses quatro a gente tem também uma fisioterapeuta e uma educadora física, que tem uma equipe que trabalha junto com a insatisfação e a distorção corporal. Então, são profissionais que discutem e que trabalham sempre com único objetivo, que tem sempre uma meta uma auxilia a outra uma passa informações para outra, o paciente deve saber que cada cada profissional tem o seu objetivo mas a equipe comum tem um único objetivo. O tratamento de um transtorno alimentar é  muito longo. A gente não tem aquilo que a gente chama de uma cura, o que a gente tem é uma melhora, a gente tem remissão dos sintomas, a gente tem um aprendizado para lidar com os gatilhos que geram os comportamentos transtornados. Porém, é sempre um controle da doença. Com anorexia ela aprende a controlar os seus pensamentos e sentimentos diante de uma determinada situação, situações de gatilho e para lidar com elas.  Trecho 3 do curta metragem “Eiva”.  “Mas conseguimos ajudá-la a tempo, porém é uma doença permanente, então além de recuperar seu peso, terá que levá-la ao psicólogo, ao nutricionista com um tratamento a longo prazo. Acredita-se que a família, os profissionais da saúde e educadores devem estar atentos aos seus filhos, pacientes e alunos, estabelecendo continuamente um clima de diálogo, cuidado e informação no que se refere aos comportamentos de risco para o desenvolvimento de transtornos alimentares.“ Rafaela: Esse foi o episódio 138. Ele foi apresentado por mim,  Rafaela Repasch, e pelo Rafael Revadam. Nós também participamos da produção, junto com a Camille Bropp.  Rafael: As músicas usadas neste programa são da YouTube Audio Library. A revisão do roteiro e a coordenação são da professora Simone Pallone, do Labjor/Unicamp, e os trabalhos técnicos de Gustavo Campos e Octávio Augusto. Este episódio também contou com trechos do curta de animação “Eiva” de Rafaela Repasch. O link para a obra completa está na descrição do programa. Rafaela: Você também pode nos acompanhar nas redes sociais. Estamos no Instagram e no Twitter, basta procurar por “Oxigênio Podcast”. Rafael: E você pode deixar a sua opinião sobre este episódio comentando na plataforma de streaming que utiliza. Até a próxima!  
28 minutes | Nov 18, 2021
#137 – Latim? Morreu, mas passa bem
Você já se perguntou de onde vêm aquelas palavras utilizadas em tribunais que muitas vezes quase não conseguimos pronunciar? E quanto a um nome científico de alguma espécie de animal nova? A utilização do latim permeia o nosso cotidiano e fazemos o uso dessa língua constantemente. Mas o que muitas vezes passa despercebido é que a atribuição de nomes científicos tem um motivo fundamentado e o uso dessa língua antiga, que é a mãe do nosso idioma, também é corroborado no meio jurídico nacional.  Embora seja senso comum dizer que o latim é uma língua morta, neste episódio convidamos a Aline Tomás, Juíza de Direito do Tribunal de Justiça de Goiás e que atua hoje na Vara de Família de Anápolis para falar sobre a importância da utilização do latim em procedimentos jurídicos e o Rafael Rigolon, biólogo e professor da Universidade Federal de Viçosa, a UFV, para falar sobre o latim na ciência, e mostrar que essa língua, na verdade, está indo muito bem, obrigada. Quem vai navegar com a gente na evolução desse episódio nada macarrônico é a Isabella Tardin Cardoso, Dra. em letras clássicas pela USP e professora de língua e literatura latina na Universidade Estadual de Campinas  e o Luciano Pfeifer, professor de português jurídico na Universidade Presbiteriana Mackenzie. _________________________________________ Roteiro ALINE TOMÁS: Então a pessoa recebe a sentença e diz assim: Ganhei ou perdi? Preciso ligar para o meu advogado.  MAYRA TRINCA: Alô! JOÃO BORTOLAZZO: Oh, Dra. Tudo bem? Queria saber se meu processo andou. MAYRA: Saiu decisão. Mas, o juiz não concedeu a liminar porque não conseguimos comprovar o periculum in mora. JOÃO: Não entendi nada, Dra. Tá falando grego? MAYRA: Grego não, é Latim. . Vinheta do Oxigênio JOÃO: Eu sou o João Bortolazzo. MAYRA: E eu sou a Mayra Trinca. No episódio de hoje, vamos falar sobre o Latim, a língua que deu origem ao Português. E nossas perguntas são: como e por que ela continua sendo usada?  JOÃO: O latim é uma língua muito antiga, mas muito antiga mesmo, mas que se mantém presente no nosso dia-a-dia até hoje. Muitas vezes nem percebemos, mas o latim está em termos jurídicos, científicos, acadêmicos. Usamos alguns termos sem diferenciá-los da língua portuguesa, que deriva do Latim. Nós falamos com a Isabella Tardin Cardoso, Dra. em letras clássicas pela USP e professora de língua e literatura latina na Universidade Estadual de Campinas pra saber da origem do Latim ISABELLA CARDOSO: Os primeiros indícios de língua latina registrados, em inscrições, perto do século sétimo antes de Cristo. Aliás é uma fivela, em que está escrito “Manio me fez para Numério”. Então uma marca registrada de quem era o dono da fivela e quem tinha feito. Começa no século sétimo antes de Cristo, é a chamada Fivela de Prenestria, a Fíbula Prenestina.  MAYRA: Antes mesmo do século 7 antes de Cristo, o latim já tinha começado a se desenvolver, mas era uma língua sem muitos registros escritos, já que era muito mais comum  o uso oral da linguagem na época do que a escrita. Essa fase da língua ficou conhecida como Latim arcaico ou Protolatim.  JOÃO: Conforme as pessoas começaram a escrever e registrar a língua, ficou muito mais fácil manter regras e daí se originou o que se chama de Latim clássico, que era mantido principalmente pelos escritores eruditos antigos, legisladores e Estado como um todo. MAYRA: Assim como no Português, a linguagem falada é diferente da linguagem escrita, e por isso, podemos observar a formação de dialetos. Com o Latim não foi diferente. E conforme o Império Romano se expandiu pela Europa toda, o Latim falado pelo exército, que era um Latim chamado Vulgar, foi ganhando adeptos em outros povos. E isso ajudou a manter a língua viva, né, Isabella?  ISABELLA: O que ajudou a manter a língua foram duas coisas, uma foi a política linguística que os romanos tinham a  famosa pax romana, fala assim, tudo bem, olha eu conquistei você, você quer ser meu amigo? Vocês continuam falando o que vocês quiserem em casa, mas a administração vai ser em latim e o exército romano que ia pra lá, falava em latim, o latim de classe em geral não tão abastada, ná? com menos estudos, e isso foi algo que implantou o latim em diversas partes do território que ia sendo ocupado por Roma. JOÃO: Imagino que essa língua foi se juntando com a língua de outros povos e foi virando uma miscelânia de idiomas, né? LUCIANO PFEIFER: Então, o português, de maneira geral, se originou, a exemplo de outras línguas latinas, de variantes mais populares do latim que chegaram na península ibérica com a expansão e com o domínio do império romano, e foram transmitidas essencialmente pela oralidade. Então a gente tem lá o fenômeno da transmissão irregular, né? Que nem aquele brinquedo que a gente usava na infância, o telefone sem fio, você começa falando pro seu colega do lado uma coisa e quando chega no último da fila já modificou muito a fala original.  MAYRA: Esse que você acabou de ouvir é o Luciano Pfeifer, professor de Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Como ele comentou, o Latim vulgar foi se modificando ao longo dos anos e acabou dando origem ao Português, que também mudou bastante até chegar ao nosso Português atual. Quando a gente fala dessas modificações das línguas, é comum a gente ouvir metáforas que vem da Biologia, como evolução ou línguas mortas. E essa é uma expressão que você provavelmente já ouviu relacionada com o Latim.  ISABELLA: Então, quando a gente fala de palavras mortas ou de uma língua morta, a gente fala de palavras ou línguas que foram esquecidas, de que ninguém mais se lembra. Então num sentido… sentido que é mais usado, a expressão língua morta, nos estudos de história da língua ou de linguística histórica, significa uma língua que não é mais usada, né, que não é mais empregada. Ou que não tem nenhum falante nativo.  ISABELLA: Então o Latim, é uma língua morta, nesse sentido de que ninguém nasce atualmente, normalmente, não se nasce aprendendo latim, mas não é uma língua extinta. Porque, diferentemente de muitas línguas, é é, inclusive infelizmente, muitas línguas indígenas brasileiras, né? Temos pessoas que sabem o latim, né é é, na sua variante escrita leem latim, sabem se comunicar em latim, conhecem a estrutura da língua né?  JOÃO: Realmente, o latim é uma língua morta nesse sentido. Mas se pensarmos na utilização da língua, percebemos que, embora morta, ela não foi extinta como outras línguas antigas, ela continua sendo usada, falada Veja bem, na área jurídica, por exemplo, utilizam-se muitas expressões em latim para resumir conceitos mais complexos. ISABELLA: Na área do direito penal, né, só pra gente ilustrar. Nós temos alguns princípios, é… Nullum crimen sine lege, né, Nullum crimen sine poena. Na verdade, não há nenhum crime, não se pode dizer que nada é crime se não existe uma lei prescrevendo isso. É o princípio da legalidade, né? Ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo, Nemo se tenetur, e assim vai, é é são são princípios que aludem, não só a uma língua, mas é, uma cultura né  MAYRA: É verdade. Língua e cultura são muito mais próximas do que a gente imagina. O que e como a gente fala diz muito sobre o lugar de onde viemos e das nossas concepções de mundo. A escolha das palavras pode ser inconsciente, mas carrega uma história por trás do significado delas. A Isabella e o Luciano estavam falando sobre isso quando disseram que a manutenção dos termos em Latim retomam a regras sociais que foram estabelecidas séculos atrás / e da relevância dessas regras pra nossa organização social hoje. LUCIANO: Ele, então, o latim, preserva não apenas, a gente pode dizer, uma tradição estilística, né, no sentido de embelezar, de ornamentar o texto, mas sobretudo, é… Digo para vocês, a tradição humanista, que nos fala e nos ensina muito a respeito do nosso regramento social, na… ao qual todos nós estamos subordinados. Então é interessante ver que o latim, dado a concisão, a objetividade, a clareza na maneira como ele foi utilizado pelo direito Romano para regrar a vida dos cidadãos, tal qual ele continua valendo da mesma maneira hoje, então valia na antiguidade e continua valendo hoje quando a gente pensa no regramento social  JOÃO: Lembra no começo do episódio quando falamos sobre periculum in mora. ALINE: Então, esse é um exemplo de que, para nós, em nada atravanca. Mas quando você entrega a sentença, fala, olha, diante do periculum in mora, eu vou conceder agora o que você pediu. Ai a pessoa vai ler e vai falar: Diante de que? Então, aí por isso que vem a pergunta: Eu ganhei ou perdi? Porque se isso for bom, se esse nome for bom, então eu ganhei. Mas se esse nome for ruim, é desfavorável a mim. Então, são esses termos que a gente procura, hoje, não utilizar na hora da entrega, para o autor e para o réu, autora e ré, da prestação que ele foi ali buscar, que ele bateu ao judiciário. Por que? Está muito ligado ao acesso à justiça.  MAYRA: Essa é a Aline Tomás, Juíza de Direito do Tribunal de Justiça de Goiás e que atua hoje na Vara de Família de Anápolis. Aline, você pode contar um pouco sobre como que é sua relação com as pessoas que buscam a justiça por algum motivo, através do seu Tribunal?  ALINE: Vez ou outra eu era questionada pelo usuário da justiça, que a gente chama lá de jurisdicionado, né, que é a nossa parte, o autor o réu, ou uma testemunha, que vinha e falava “Ah, doutora, deixa eu só ver se eu entendi, esse termo que você usou significa..?” Na verdade era uma pergunta, né? Então, a pessoa não havia entendido.  JOÃO: Então, foi a partir dessas experiências que você teve a ideia de tornar a linguagem jurídica mais acessível ao grande público? Foi aí que você criou o Projeto Simplificar? ALINE: É aí que então surge a ideia de um projeto, que é o Projeto Simplificar que vocês tomaram conhecimento, justamente para traduzir essa linguagem jurídica em imagens, desenhos, figuras e frases curtas, claras e acessíveis. Para transformar o que é difícil de ser entendido no direito em palavras que qualquer pessoa possa entender. Então, esse é o esforço do projeto hoje.  ALINE: Então, eu transformo essa sentença com uma linguagem jurídica em um resumo, em que eu utilizo, apenas realizando uma limpeza do que é detalhe, trazendo um foco para a informação mais importante, aquela que realmente precisa saltar aos olhos para eu entender que o processo está resolvido para aquela pessoa, e transforma ali então em frases curtas, em palavras-chave, em uma linha do tempo, ou um gráfico, ou um elemento visual que faça sentido naquela hora. E contendo ali, de forma muito clara e precisa, somente os pontos principais.  MAYRA: Quando descobrimos esse projeto, eu fiquei encantada. Achei incrível o cuidado que ele representa com as pessoas que estão buscando ajuda, e que já se encontram numa situação fragilizada e ainda não conseguem compreender direito o que está acontecendo e como isso tudo afeta a vida dela. Mas Aline, qual foi a sua motivação? Por que criar esse projeto? ALINE: Porque eu, como magistrada, entendo o seguinte: Só se valoriza o que se entende. Então, para eu ter certeza de que eu fui atendida em uma vara, eu preciso entender o que que é que eu recebi de lá. Porque eu sei o que eu fui buscar, e aí quando eu recebo e entendo eu me sinto valorizada. Então, isto foi feito para mim e eu não vou depender de uma terceira, quarta pessoa para conseguir entender, depois de horas, aquilo que eu já recebi e que fui eu que fui buscar, né?  JOÃO: Pra quem trabalha no Direito, a linguagem utilizada nas sentenças é normal, compreensível.. Mas quando se trata do cidadão leigo, esse tipo de jargão judicial pode parecer uma ferramenta de segregação e de manutenção do poder. Contudo, nem sempre se trata apenas disso, como explica a Aline. ALINE: Por exemplo, nas petições hoje, é muito comum o advogado usar termos como, você vai entrar com uma ação e você quer uma decisão rápida, então você quer mostrar para o juiz que tem perigo na demora daquela decisão vir depois, aí diz, periculum in mora, e isso, periculum in mora, é algo que qualquer um, advogado, servidor, ou juiz entende naturalmente, nem pensa que possa ser numa outra língua que não o português.  MAYRA: Mesmo com toda essa familiaridade de quem trabalha na área do Direito, não quer dizer que tenha sido fácil desde o princípio. No começo esse contato com o Latim é complicado pra todo mundo. ALINE: E eu me lembro hoje, como se fosse hoje, que eu, o meu primeiro livro, introdução ao estudo do direito, eu lia a mesma página umas 5 vezes, respirava e lia novamente. Mas isso rapidamente vai se tornando algo natural para nós. MAYRA: Se pra quem já possui interesse e entende a importância desses termos a língua pode ser complicada, pra quem está fora desse contexto e entra em contato com o Latim só de vez em quando, se precisar de um atendimento jurídico, por exemplo, é ainda mais difícil entender o que está acontecendo.  ALINE: Então é essa preocupação hoje ao tentarmos simplificar essa linguagem. É claro que o latim tem seu valor. Isso são, isso não nasceu hoje. São anos que o próprio latim permeia o direito. Não é isso, a gente não está desvalorizando as expressões em latim e aí certamente que vocês vão ouvir profissionais da área que vão trazer toda a riqueza que ele agrega ao direito. Mas hoje especificamente, a nossa preocupação quando a gente foca na parte, no jurisdicionado, é tentar trazer esse acesso à justiça mais real, mais próximo e mais rápido.  RAFAEL  18’49’’ Quando eu falo que o nome científico, por exemplo da mosca, é Musca domestica, olha que que nome fácil de pronunciar, né? Então pra gente é um baita negócio manter o latim e eu acho que vai continuar uns bons, uns bons séculos, viu? Vai continuar por muito tempo. 19’08’’ 21’52’’ O Direito vai abandonar o Latim muito antes que nós 21’55’’ RAFAEL RIGOLON: O Latim sumiu de quase todos os lugares do mundo, né, mas ficou conosco, ta aí com a gente da Biologia, a gente tem de herança essa língua aí, que alguns chamam de língua morta, né? Que eu acho um absurdo, não concordo com essa expressão. Mas latim sumiu quase do mundo todo, e ele ficou lá no no direito, com algumas expressões do do juridiquês, né, que a gente fala, são algumas frases que os advogados, os homens da lei, gostam de repetir, ficou por lá e com a gente da nomenclatura biológica. JOÃO: Esse é o Rafael Rigolon. Ele é biólogo, professor da Universidade Federal de Viçosa, a UFV.  MAYRA: O Rafael mencionou a nomenclatura biológica, que é um conjunto de regras seguidas por biólogos e biólogas no momento de dar o nome pra uma nova espécie. Essas regras foram obra do Lineu, um cientista importante do século XVIII (dezoito). Por exemplo, o nome completo de uma espécie sempre tem duas partes, elas devem estar em Latim e destacadas do resto do texto, em itálico ou sublinhadas. RAFAEL: E o Latim não foi escolhido para ser a língua da nomenclatura, é, o latim ficou. O Latim é uma herança de uma época onde só se falava em latim, né, principalmente nas universidades. A língua da ciência até o século 17 era só latim. Depois que foi abrindo para outras línguas. E era lindo que já tava lá, os nomes já estavam naturalmente em latim e não houve nenhum interesse assim é para tentar mudar. Era uma língua que atendeu todo mundo e atende até hoje. JOÃO: Tá, mas o tempo muda. A ciência evolui, o tempo passa e por que não podemos trocar isso também? Por que não podemos colocar português ou qualquer outra língua no lugar do latim.? RAFAEL: Vamos trocar. Mas a gente põe qual língua? E aí que tá o pomo da discórdia, porque se qualquer outra língua que nós coloquemos no lugar, você vai puxar a brasa para a sardinha de um país. Se a gente coloca a língua inglesa, acho que é nós vamos ficar chateados, né? Ficar falando esses nomes em inglês. Se a gente coloca em mandarim, que é uma opção global interessante, aí piorou, né? Então seja lá qual língua viva que a gente tente colocar hoje como língua da nomenclatura, a gente vai deixar um grupo insatisfeito. O latim, ele é neutro, ele não vai puxar, ele vai fazer moral com nenhuma língua, né?  MAYRA: Pra universalizar, a gente mantém o Latim nos nomes científicos. Imagine um congresso, que reúne cientistas de vários países e que estão tentando dividir informações sobre uma espécie. É importante saber exatamente qual é essa espécie, então ela precisa ter o mesmo nome no mundo todo.  JOÃO: Então, mesmo as espécies novas, precisam ter um nome que vem do Latim. Mesmo que seja uma homenagem ou um nome em inglês, ele precisa parecer Latim. Um exemplo é o Batmanacarus robini, um ácaro que parasita morcegos. RAFAEL: Então todos os nomes científicos, todos, são latins, né, são de origem Latina ou eles são latinizados, quer dizer eles, é uma adaptação macarrônica lá, mas que é tratada como latim, por mais que não pareça Latim. ISABELLA: Macarrônico não é macarrão não, viu, gente?  MAYRA: Mas, Isabella, se não tem a ver com macarrão, de onde vem macarrônico? ISABELLA: Era um tipo de comédia, um tipo de espetáculo bufão do século XVI, é, que usava palavras que imitavam o latim, eram palavras da língua vernácula, do italiano da época, que imitavam como se fosse o latim. A gente tem exemplos disso, né, no português também. [O famoso embromation]. O embromation. (risos)  JOÃO: Mas peraí, Rafael! Você não é biólogo? Tô meio perdido. Por que a gente tá discutindo latim e etimologia? RAFAEL: Quando eu entrei na universidade, na graduação eu já tinha esse hábito de cutucar os nomes científicos, né, de vasculhar e saber o significado oculto. Ninguém sabe latim, estudou latim, é, fez curso. Não naturalmente, não, né, na escola. Então fica aquele significado velado e quando ele se revela aí muitas vezes é uma surpresa agradável, uma surpresa muito boa. E eu achei que só eu era doido de gostar dessas coisas né? Do latim, do que está escondido, da etimologia, né, que é a origem das palavras e eu tô percebendo que tem mais gente que gosta também, que se diverte e aprende né? MAYRA: Você tá dizendo que tem muita gente interessada no significado das palavras, então? Como você encontrou essas pessoas todas? RAFAEL: Eu comecei com a página Nomes Científicos no Face, aí era só no Facebook, ela já está indo aí tem quase 9 anos, a página está com, arredondando, 100 mil, não sei o número certo, né. E no Instagram, que eu demorei pra ir pro Instagram. Eu achei que esse tipo de conversa não ia dar certo no Instagram, lá é um lugar de comunicação rápida não é um lugar de leituras longas, então demorei para ir para lá, foi em 2018 e no Instagram são 30 mil.   JOÃO: E, Rafael, sobre o que é essa página exatamente? RAFAEL: É é, ela é uma página de divulgação científica, de de de divulgação de conhecimento, né, de um modo geral. Era só um hobby mesmo, era por prazer. Eu era aquele que ficava buscando na internet origem de palavra, buscando nos dicionários, eu tenho um monte de de dicionário aqui, que eu adoro ficar folheando para ver origem, né? Mas o mais gostoso é conversar com as pessoas. É igual quando a pessoa que é cinéfila, que gosta de ver os filmes, mas com um olhar mais crítico, ninguém é cinéfilo sozinho, ele gosta de comentar com os outros, né? Então na etimologia das palavras eu segui no intuito inicial de conversar. Falei “imagino que tenha mais pessoas que gostam disso aí também, né? Então vamos ver se a gente consegue conversar e de fato tem doido para tudo, o pessoal gosta de saber o que o latim significa, qual é a origem…  JOÃO: Legal, é realmente muito interessante falar sobre esse assunto. Eu, particularmente, gosto muito. Mas tem uma questão problemática quando esse interesse sobre terminologias em latim passa a ser mandatório, obrigatório. Por exemplo, uma pessoa comum do povo, que não tem nada a ver com biologia ou teoria do direito ter que saber o que uma expressão em latim significa para conseguir assimilar o que está sendo discutido num contexto que deveria ser acessível pra ele. RAFAEL: Eles gostam de falar difícil. Mas é porque eles estão acostumados a falar de cientista para cientista, e aí a linguagem pode ser rebuscada, a gente pode usar latim, não tem problema, né? Agora, quando o assunto é divulgação científica, a linguagem tem que ser outra. Tem que ser fácil, acessível e compreensível na primeira lida, né, da melhor forma possível.  MAYRA: A gente percebe muito isso, né? Parece que quem faz parte de um grupo dito mais erudito, gosta de mostrar, logo na forma de falar, que possui mais conhecimento, que tem uma bagagem linguística maior.  RAFAEL: Acho que o vocabulário que nós usamos, em todas as esferas, é um lugar de disputa cultural. Fato. A Cultura influenciando no que a gente fala ou deixa de falar. Eu vejo meu alunos falando com muita ostentação, né, que é a UFV é uma universidade que tem 3 campi. Então só o fato de falar 3 campi, mostra alguma erudição, mostra que você faz parte da academia, né? Acho que é por isso que a expressão não vai embora  MAYRA: O latim como linguagem acadêmica, sinal de erudição, não fica restrito às ciências naturais. Nós já falamos um pouco sobre como esse fenômeno acontece também nas ciências sociais, como é o caso do Direito. Aline de volta com a gente. ALINE: O que que acontece? A gente verifica que os profissionais do direito quando não utilizam, tem a sensação que perdeu um pouco a riqueza daquela linguagem, então se você simplifica demais, pode causar uma falsa interpretação, porque eu posso garantir que a gente que tá lendo não tem essa interpretação, de que o advogado, de que aquele profissional do direito não é tão bom assim, não mostra erudição. Então ficou muito ligado a isso, a um bom estudioso, a alguém que realmente entenda do direito e que estudou diversos doutrinadores, né, e que domina toda aquela linguagem jurídica.  LUCIANO: Essa é uma busca constante do direito quando a gente pensa na questão da linguagem, e daí nesse sentido o latim tem uma influência muito forte, por essa busca, pelo uso correto, pela concisão pela clareza e mesmo pelo embelezamento do discurso, quer dizer, saber usar o discurso jurídico de forma adequada considerando ainda que existe aquela talvez máxima de que no fim de tudo, pro discurso jurídico, você utiliza buscando a persuasão do seu interlocutor, quer dizer, levar seu interlocutor a crer naquilo que você está apresentando pra ele.  ISABELLA: E que com isso tem um certo valor de autoridade, não na medida para você… para mostrar que as pessoas sabem latim, que são eruditas. Mas é que há uma alusão a um princípio que já existe há muito tempo, que não é invenção do jurista, que não está sendo usado isso de uma maneira arbitrária né?  JOÃO: Caramba, é tanta coisa que influencia na maneira como a gente fala e nos termos que a gente escolhe usar. E no fim, o que determina tudo isso é o contexto dessa comunicação, né? MAYRA: Se estamos em um ambiente mais formal, ou junto com pessoas que possuem a mesma formação acadêmica, é normal que a gente use termos específicos, já que todo mundo se entende. Isso é até importante, como uma forma de preservar a história envolvida neles.  JOÃO: Agora, quando a conversa se expande para grupos com as mais diversas formações, é interessante buscar alternativas que tornem o discurso mais próximo da realidade de todas as pessoas envolvidas. JOÃO: Admiror nec rerum solum, sed verborum elegantiam. MAYRA: Ou seja, admiro não só a elegância das coisas, mas também das palavras. JOÃO: Esse episódio foi escrito e apresentado por mim, João Bortolazzo e pela Mayra Trinca. A revisão do roteiro e a coordenação são da professora Simone Pallone, do Labjor/Unicamp, e os trabalhos técnicos são do Gustavo Campos, bolsista SAE do Labjor, e do Octávio Augusto, da Rádio Unicamp.  MAYRA: A trilha sonora do episódio é da Biblioteca de Áudio do Youtube e do Freesound. A arte de divulgação foi criada pela equipe. Você já sabe, mas não custa lembrar que o Oxigênio é o podcast de ciência e tecnologia da Unicamp, realizado pelo Labjor em parceria com a Rádio Unicamp. JOÃO: E pra ficar por dentro de tudo o que produzimos no Oxigênio, acompanhe a gente nas redes sociais. Estamos no Facebook, (facebook.com/oxigenionoticias – tudo junto e sem acento), no Instagram (@radiooxigenio) e no Twitter (@oxigenio_news). Aproveita pra deixar lá a sua opinião sobre esse programa.
27 minutes | Oct 21, 2021
#136 – De olho no rótulo
Em outubro de 2020, foi aprovada pela Anvisa a nova norma sobre rotulagem nutricional de alimentos embalados, que entrará em vigor em outubro de 2022. Segundo a Agência, as mudanças vão melhorar a clareza e tornar mais legíveis as informações nutricionais dos rótulos dos alimentos e tem como objetivo auxiliar o consumidor a fazer escolhas alimentares mais conscientes. Para entender o que vai mudar com a nova rotulagem e quais são os impactos esperados dessa mudança na indústria de alimentos e na segurança nutricional da população, a Ana Augusta Xavier e o Rafael Revadam ouviram a professora Cínthia Baú Betim Cazarin, que trabalha na Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp na área de alimentos, nutrição e saúde, a Thalita Antony de Souza Lima, gerente geral de alimentos da Anvisa, e a Ana Paula Bortoletto Martins, que é consultora técnica do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. _______________________________________ Roteiro Ana Augusta Xavier: Oi. Pra começar o programa de hoje eu queria te convidar pra fazer um exercício. Na verdade é só pra puxar aí na sua lembrança a última vez que você foi no supermercado. Bom, vou começar contando quando foi a minha última vez. Foi no sábado, eu tava na rua há horas, resolvendo um monte de coisa que a gente só tem tempo pra resolver no fim de semana. Passei no mercado super rápido pra pegar o que faltava pro almoço. Joguei tudo no carrinho, acho que nem demorei 20 minutos lá dentro… eu já não gostava muito de supermercado antes, agora com a pandemia, quanto mais rápido, melhor. E você, conseguiu lembrar? Quanto tempo você costuma demorar no supermercado? E o que você leva em conta pra escolher os alimentos que vão pra sua casa? Rafael Revadam: Marcas que já conhece? Preço? Qualidade? O que parece mais saudável? Ou aquele produto que tem coisas como Fit ou Artesanal escritas no rótulo? E por falar em rótulos, dá tempo de ler e entender o que está escrito neles? Ana Augusta: Quando tem muitas opções do mesmo produto, eu geralmente escolho pelo preço, ou então pela qualidade, por exemplo, comprando alguma marca que eu já conheço e gosto. Mas claro, eu também tento comprar aqueles alimentos que eu acho que são mais saudáveis – na medida do possível né – mas nem sempre consigo identificar quais são só de olhar o rótulo. E isso que minha formação toda é na área de alimentos, hein…  Rafael: É, não entender os rótulos dos alimentos é algo muito mais comum do que deveria. Em uma pesquisa de 2016, feita pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, o Idec, 40% dos mais de 2600 participantes responderam que têm dificuldade de compreender as informações dos rótulos. Ana Augusta: Entre as principais dificuldades foram citadas, nessa ordem: a letra muito pequena, o uso de números e termos técnicos, a poluição visual e a necessidade de fazer cálculos pra ter alguma  noção das quantidades dos nutrientes.  Rafael: Essa falta de compreensão da rotulagem é um problema grave, já que o rótulo é a forma de quem produziu o alimento se comunicar com o consumidor. O rótulo é tipo um currículo, que mostra as características nutricionais daquele produto, e então, com essa informação em mãos, a gente decide se contrata, quer dizer, se compra ou não determinado alimento. Um rótulo claro e fácil de entender permite que a gente faça escolhas mais saudáveis e adequadas ao nosso estilo de vida. Ou, se não quiser os produtos mais saudáveis, pelo menos tenha consciência do que está levando.  Ana Augusta: Foi pensando nisso que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, reformulou a norma de rotulagem de alimentos no país. A nova norma, que vai entrar em vigor a partir de outubro de 2022, vai mudar bastante a cara de muitos produtos que vemos nas prateleiras do mercado. Mas calma que a gente vai explicar tudo daqui a pouco. Eu sou Ana Augusta Xavier. Rafael: E eu sou o Rafael Revadam, e em comemoração ao dia mundial da alimentação que foi no último dia 16 de outubro, no episódio de hoje vamos descobrir o que vai mudar com a nova rotulagem de alimentos. Cinthia Cazarin: Eu acredito que seja importante a gente começar falando quais as motivações pra mudança da rotulagem nutricional, né? Ana Augusta: Esta é a Cinthia Cazarin, professora da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp que realiza pesquisas na área de alimentos, nutrição e saúde.  Cínthia: Os altos índices de doenças crônicas não transmissíveis são um dos motivadores, então essa busca por uma melhor qualidade na alimentação, estilo de vida da população, muito provavelmente foi o fator que levou o Ministério da Saúde, a ANVISA a pensar nessa mudança, porque é o meio que a indústria tem pra se comunicar com o consumidor. Eu acredito que é isso as altas taxas, né? As incidências elevadas dessas doenças, obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares, hipertensão, que motivou essa mudança. Rafael: Mas o que essas doenças têm a ver com os rótulos dos alimentos? Bem… a ciência já sabe que o consumo excessivo de nutrientes como açúcar, gordura saturada e sódio tem alta correlação com a incidência dessas doenças, e que são um enorme problema de saúde pública. Se você quiser saber um pouco mais sobre isso, recomendamos o episódio “Doenças crônicas não transmissíveis” do podcast Prato de Ciência, da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp.  Ana Augusta: Pois é, e são esses nutrientes o grande foco da nova rotulagem. No modelo de hoje, as informações sobre eles estão naquela tabela nutricional que fica atrás da embalagem dos produtos. Agora, eles vão ficar na frente do produto. Aqui a Cinthia de novo.  Cinthia: Essa tabela nutricional, ela fica na parte de trás da embalagem e quando a gente passa numa gôndola de supermercado, por exemplo, a gente não enxerga ela. Pra você ter acesso a essa informação você vai ter que parar, pegar o produto na sua mão e fazer a leitura. Muitos estudos têm mostrado que uma das variáveis que levam os indivíduos a não fazer a leitura da tabela é por falta de tempo, porque você tem que parar, pegar todos os produtos, daquela categoria que você quer consumir pra fazer essa leitura e avaliação do que é melhor entre um e outro. Então, a proposta dessa rotulagem nova é trazer de uma maneira simplificada essas informações pra frente do rótulo do produto, ou seja, quando você passa no corredor de um supermercado aquilo já está estampado na frente, então uma parada muito rápida em frente à gôndola, você faz eh a leitura visual da qualidade dos produtos e a comparação entre eles pra tomar a sua decisão do que você vai comprar. Então, a ideia é facilitar a comunicação e o entendimento do consumidor pra que ele consiga fazer escolhas mais saudáveis.  Rafael: A rotulagem frontal, que também é conhecida pela sigla FOP, front-of-package em inglês, é a principal novidade na rotulagem dos alimentos. A Anvisa optou por usar um modelo chamado de advertência, que é quando se utiliza símbolos pra alertar o consumidor sobre a presença de nutrientes que não fazem bem. Ana Augusta: Vai ficar assim: os produtos que tiverem quantidades consideradas altas daqueles nutrientes que já falamos aqui – açúcar, gordura saturada e sódio –  vão ter que apresentar na frente da embalagem uma lupa acompanhada de um selo escrito “Alto em”, tudo com fundo branco. Do lado e com fundo preto vem o nome do nutriente. Por exemplo, uma bolacha com muito açúcar vai ter a lupa com o selo “Alto em açúcar”. Caso o alimento seja alto em mais de um dos nutrientes alvo, vai ter que colocar um selo pra cada nutriente. Rafael: Tá, mas quanto açúcar um alimento tem que ter pra ser considerado alto em açúcar? Bem, a legislação definiu os limites considerando 100 gramas de produto. Então, pra não receber o selo de “alto em” o produto pode ter no máximo 15 gramas de açúcar a cada 100 gramas. Já pra gordura saturada, o limite é de 6 gramas, e para o sódio, é de 600 miligramas.  Ana Augusta: Isso quer dizer que é bem provável que aquela sua latinha de refrigerante gelado ou a caixa de cereal matinal ganhem um selo de alto em açúcar e o pote de sorvete, além do açúcar, também ganhe um de alto em gordura saturada. Até produtos que muita gente considera saudáveis vão ganhar selos, tipo algumas barrinhas de cereal. Rafael: A Thalita Lima é gerente geral de alimentos da Anvisa e nos explicou que os cálculos para definir os limites dos nutrientes foram baseados em recomendações da OMS, a Organização Mundial da Saúde, e do Codex Alimentarius, uma coleção internacional de recomendações e códigos relativos à produção de alimentos e segurança alimentar. Nós também perguntamos pra ela qual foi o caminho percorrido pela Anvisa até chegar neste modelo de rotulagem e porque ele foi o escolhido.  Thalita Lima: A gente fez um levantamento do cenário regulatório internacional, não tem um modelo padronizado no mundo, tem uma diversidade enorme, foram estudados mais de quarenta modelos diferentes de rotulagem frontal, tem modelos de rotulagem frontal que são modelos que a gente chama de positivos, e tem modelos que eram interpretativos, que dão notas pro alimento, estrelas, ou fazem uma graduação de A-E. Então o modelo que informasse pra população logo no momento da aquisição do produto o alto conteúdo de nutrientes críticos, é um modelo que a gente considerou relevante, o melhor e mais adequado pra população. Eh passada essa etapa, de definir o modelo alto em, a gente foi avaliar qual é o melhor símbolo pra fazer isso, né? Então vamos estudar aí modelos que já existem no mundo, a gente tem o Uruguai, que adota eh um octógono, a gente recebeu contribuições da sociedade civil, sugerindo o triângulo, enfim, eh. O que a gente entendeu eh que seria mais apropriado era um modelo informativo né? Eh muito importante que a gente preservasse a autonomia do consumidor pra tomar as suas decisões. Então é quando nós escolhemos o símbolo da lupa né, que foi o modelo que foi escolhido pela Anvisa, é justamente pra dar essa conotação de uma informação mais apurada né, de um destaque da informação e não necessariamente um alerta, né? Uma coisa de que ah esse alimento está proibido, nada nesse sentido. Então é muito mais um destaque a uma informação que foi considerada, né, a informação mais relevante, por assim dizer.  Ana Augusta: A Anvisa realizou testes para confirmar se a população estava entendendo a proposta de nova rotulagem e conseguindo fazer as suas escolhas de compra a partir dela. Com os resultados, a agência bateu o martelo e decidiu que o modelo de lupa seria o definitivo. Rafael: Mas além da lupa e dos selos de Alto em, mais coisas vão mudar nos rótulos. Uma delas já falamos aqui: a base para cálculo dos nutrientes e do valor energético da tabela nutricional passará a ser 100 gramas ou 100 mL do alimento, o que vai facilitar a comparação entre produtos. Os fabricantes também deverão indicar o número de porções por embalagem. Ana Augusta: Também vai passar a ser obrigatória na tabela nutricional a sinalização de açúcares totais e adicionais, o que vai deixar claro pro consumidor se o açúcar daquele produto é natural dos ingredientes ou foi adicionado, como um extra. Além disso, todas as tabelas deverão ter letras pretas e fundo branco, para garantir a legibilidade das informações.  Rafael: No processo de elaboração da nova legislação, a Anvisa contou com a participação de diferentes agentes externos que seriam impactados com a nova rotulagem, como a sociedade civil, a academia e órgãos de governo. Estes atores foram ouvidos para apontar quais problemas da legislação vigente precisavam ser resolvidos, além de apresentarem propostas. Ana Augusta: Um deles foi o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, o Idec, que participou dessa discussão desde o início, em 2014. A Ana Paula Bortoletto, consultora técnica do Idec, nos contou um pouco sobre isso. Ana Paula Bortoletto: O IDEC integrou o grupo de trabalho técnico da Anvisa, que foi a primeira do processo né, em que foram discutidas as pesquisas, os dados disponíveis sobre o problema da rotulagem no Brasil e quais seriam os melhores melhores caminhos pra melhorar essa informação, e depois desse grupo de trabalho o IDEC também desenvolveu pesquisas em parceria com o Nupens pra avaliar a abordagem pro Brasil em relação à rotulagem nutricional frontal e desenvolveu um. modelo apresentado pra ANVISA de rotulagem frontal é inspirado na rotulagem do Chile de advertências e foi um modelo no formato de triângulo desenvolvido em parceria também com pesquisadores da Universidade Federal do Paraná, que são especialistas em design da informação. E na avaliação que o Nupens e o Idec fizeram, o modelo dos triângulos, foi o que teve o melhor desempenho pra melhorar o entendimento dos consumidores sobre a informação nos rótulos dos alimentos. E ainda depois foram outras etapas do processo. Teve consultas públicas, fizemos muitas reuniões com os diretores da ANVISA, fizemos mobilização com a sociedade civil, junto com a Aliança pela a alimentação adequada e saudável, fazendo campanhas pra que esse assunto tivesse uma maior prioridade na agenda política e então realmente foi uma participação bem intensa.  Rafael: O modelo de rotulagem frontal utilizado pelo Chile sinaliza os alimentos altos naqueles mesmos nutrientes que serão sinalizados aqui no Brasil – açúcar, sódio e gordura saturada – mas, por lá, os produtos altos em calorias também recebem esse aviso. O símbolo da advertência utilizado pelos chilenos é um octógono na cor preta, com os dizeres “alto em”. Ana Augusta: A rotulagem utilizada no Chile foi pioneira e é referência para todo o mundo, juntamente com outras políticas públicas adotadas pelo país para combater a obesidade. Como a Ana Paula explicou, o modelo de rotulagem proposto pelo Idec é bem parecido com o do Chile, mas ao invés de um octógono, é um triângulo preto.  Rafael: Estes símbolos, como o octógono ou o triângulo, causam um alerta maior no consumidor. Mas, como a Thalita disse, a intenção da Anvisa não era passar a ideia de que certos alimentos são proibidos, e sim fornecer mais informação pra quem tá comprando aquele alimento. Mas algumas organizações não ficaram completamente satisfeitas com o modelo e os critérios escolhidos. O Idec é uma delas. Ana Paula: A gente ainda tem dúvidas sobre o quão efetiva de fato vai ser a lupa, né? Sem dúvida tem o avanço de ter a informação, mas nós precisamos de pesquisas que comprovem como esse modelo vai ter de desempenho. Ainda não foi feito essa análise pra confirmar a eficiência dessa opção da Anvisa. E tem a preocupação também de quais vão ser os alimentos que vão ter essa identificação, né? Porque os critério que a ANVISA aprovou pra identificar se um alimento é ou não alto em açúcar, em sódio e gorduras eh, são critérios que na nossa avaliação vão deixar de incluir alimentos que não são considerados saudáveis, né? Então a gente tem realmente preocupações. Ana Augusta: Essa preocupação da Ana Paula faz sentido. Ela contou que alguns biscoitos recheados, empanados congelados e bebidas, que são alimentos que não fazem parte de uma alimentação saudável, segundo o Guia Alimentar, vão acabar ficando sem nenhuma advertência, porque não vão atingir os limites adotados pela Anvisa para colocação do selo de Alto em. É por casos como esses que o Idec defende limites mais rígidos dos nutrientes alvo.  Rafael: Mas será mesmo que vamos fazer escolhas mais saudáveis a partir das informações da nova rotulagem? A experiência de outros países cria boas expectativas. No Chile, por exemplo, as mudanças no comportamento dos consumidores já foram vistas no primeiro ano após a implementação da nova rotulagem..   Ana Augusta: Um estudo realizado por duas universidades chilenas em parceria com uma universidade estadunidense ouviu mulheres com filhos de idades entre 2 e 14 anos, já que elas são as principais responsáveis pelas escolhas de compras de alimentos nos lares daquele país. Todas as participantes entenderam a motivação da nova rotulagem e sabem que produtos com mais advertências nos rótulos representam escolhas menos saudáveis.  Rafael: Por aqui só será possível ter a noção exata do impacto da nova rotulagem alguns anos após sua implementação, que ocorrerá em outubro de 2022. Mas os resultados de uma pesquisa publicada na revista Food Quality and Preference, feita com consumidores brasileiros, indicam um possível cenário positivo. Ana Augusta: Na pesquisa, 862 consumidores avaliaram alimentos com rótulos contendo o modelo de advertência de nutrientes igual ao utilizado no Chile, aquele do octógono. Os resultados mostraram que a presença do selo de advertência diminuiu de maneira significativa a percepção de saudabilidade de todos os produtos estudados, que foram iogurte de morango, suco de uva, biscoito cracker e pão de forma. Rafael: E, além do comportamento dos consumidores, outro impacto esperado da nova rotulagem vai recair sobre a indústria de alimentos. Mas não vai ser somente na questão de adequar e refazer os seus rótulos não… Thalita: É um dos resultados esperados, apesar de não ser o principal objetivo do regulamento é que haja ações de reformulação, de melhoria do perfil nutricional desses alimentos, né? Claro que as empresas não querem ter que declarar a lupa do alto conteúdo de nutrientes críticos, então a expectativa é que muitos melhorem a composição dos alimentos até pra não terem que declarar esse tipo de informação. A gente tem observado esse movimento já em alguns países do mundo como uma consequência do modelo de rotulagem.  Ana Augusta: Como a Thalita comentou, as indústrias não vão querer ter que estampar nas embalagens os selinhos dos nutrientes críticos, já que eles praticamente vão ser uma marca de que aquele alimento não é saudável. Então a tendência é que seja feito um movimento na direção de redução do teor destes nutrientes, o que é bom pra todo mundo. É um efeito colateral do bem que se espera da nova rotulagem.  Rafael: Mas a Ana Paula, consultora do Idec, fala que é preciso ter cuidado, porque a reformulação também pode acabar piorando a qualidade nutricional dos produtos. Ana Paula: Acho que em parte vai ser positivo, claro que sempre quando é possível retirar nutrientes que tragam risco à saúde é importante, mas preocupa como que vai ser essa substituição, por exemplo, do açúcar por adoçante, que a gente tem visto acontecer com muita frequência e não é uma substituição que vai trazer de fato um grande benefício pra saúde. Ou então uma reformulação que preveja que tenha mais aditivos alimentares pra fazer um equilíbrio aí da compensação do que foi retirado. Então o importante seria ter uma reformulação que caminhasse pra um menor nível de processamento industrial e não acrescentar outras substâncias que vão trazer prejuízos pra saúde também. Ana Augusta: É por isso que devemos estar sempre atentos ao que consumimos. A sociedade civil, por meio de organizações como o Idec e a Aliança pela alimentação adequada e saudável, têm desempenhado um papel imprescindível nas discussões e monitoramento não só da rotulagem nutricional, mas de diversos temas que envolvem a segurança alimentar e nutricional da população. Rafael: Da mesma forma, a academia também tem dado sua contribuição. Um exemplo aconteceu agora em 2021, com a criação do observatório de rotulagem de alimentos na Universidade Federal de São Paulo, a Unifesp. O observatório vai acompanhar a rotulagem dos alimentos comercializados no país e seus impactos nos consumidores, além de atuar em atividades de educação alimentar. Ana Augusta: E é importante dizer que o órgão responsável pela fiscalização e garantia do cumprimento das normas de rotulagem é a Vigilância Sanitária de cada município. Ela atua através de programas de inspeção e monitoramento, mas também recebe denúncias de irregularidades. Rafael: Bem, já vimos que a rotulagem influencia na escolha dos alimentos, mas ela não é, nem de longe, o fator que mais pesa na decisão do consumidor na hora de comprar comida. Escuta só o que a professora Cinthia falou… Cinthia: Tem outros aspectos também que influenciam, né? E aí o marketing faz uso disso que é o estilo da embalagem, então as imagens que são utilizadas nessa embalagem que levam o consumidor a ter uma percepção de um produto melhor ou não, a localização dessa rotulagem, então ela tá na frente da embalagem, mas ainda assim, que posição ela está? É numa posição de destaque, isso é um ponto que a gente precisa avaliar também, né? Isso realmente vai estar visível, o consumidor vai se atentar, vai chamar atenção dele. Então são variáveis ainda que a gente precisa avaliar.  Ana Augusta: Só mudar a rotulagem não vai fazer com que todo mundo coma de maneira mais saudável e que a incidência de doenças crônicas não transmissíveis diminua. Primeiro, porque as pessoas precisam entender porque comer demais determinado nutriente pode fazer mal pra saúde. Essa sinalização na embalagem precisa vir acompanhada de ações de educação alimentar.   Rafael: Segundo, porque a rotulagem nutricional é uma dentre as muitas políticas públicas que têm sido propostas pra reduzir o consumo destes produtos, como restrição da publicidade, regulamentação do mercado e impostos diferenciados, por exemplo. Não dá pra colocar toda a responsabilidade sobre as escolhas do consumidor.  Ana Augusta: E por último, a gente sabe que a alimentação é um fator chave na manutenção da saúde, mas ela é apenas um fator dentro do que a gente costuma chamar de estilo de vida saudável. Praticar atividade física, ter seus momentos de lazer pra reduzir o stress, ter uma boa qualidade de sono, enfim,  essa cartilha a gente já sabe de cor. Rafael: Claro que é importante esclarecer e informar a população, seja por meio da rotulagem ou outras ferramentas que já falamos aqui no programa. A informação empodera e dá autonomia pra que a gente consiga fazer as melhores escolhas, de acordo com as nossas necessidades.  Ana Augusta: Mas é sempre bom lembrar que o ato de comer não serve apenas pra fornecer nutrientes. Comer é um ato cultural, é político, é social. Nós comemos por fome, mas também por costume, por vontade, por prazer. Tem momentos que a gente vai querer comer um chocolate e vai comer, não importa a quantidade de advertências que tiver na embalagem. Até porque muitos alimentos, por mais que passem por reformulações, continuarão tendo advertências. E infelizmente, tem muita gente que vai continuar comendo alimentos com zilhões de advertências apenas pela necessidade de matar a fome.  Cinthia: Existem sim estudos mostrando que a implementação de uma rotulagem frontal no produto ou mesmo na gôndola, ela causa mudança no comportamento do consumidor. Então ela acaba influenciando na sua decisão de compra. Mas eu gosto de enfatizar que, principalmente na realidade do Brasil e isso a gente tá vivenciando hoje, muito mais do que uma informação nutricional, o que vai pesar na decisão do consumidor hoje é o preço do produto, né? Então a gente não pode deixar essa variável tão importante de lado. Conhecer a qualidade nutricional dos produtos é um direito do consumidor pra tomar sua decisão, mas o preço, né, o valor agregado a esse produto também é levado em consideração. Com o número de desempregados que a gente tem, de gente passando fome no mundo, não dá pra desconsiderar. E os estudos mostram que uma das variáveis que aparecem em primeiro lugar no momento de decidir qual produto eu vou consumir ou comprar é preço. Ana Augusta: O episódio de hoje fica por aqui. Ele foi apresentado e produzido por mim, Ana Augusta Xavier, e pelo Rafael Revadam. A revisão do roteiro e a coordenação são da professora Simone Pallone, do Labjor/Unicamp, e os trabalhos técnicos são do Gustavo Campos, bolsista SAE do Labjor, e do Octávio Augusto, da Rádio Unicamp.  Rafael: As músicas e efeitos utilizados neste episódio são da Biblioteca de Áudio do Youtube e do FreeSound. As artes de divulgação são da Ana Augusta Xavier. Ana Augusta: O Oxigênio é o podcast de ciência, tecnologia e cultura da Unicamp, realizado pelo Labjor em parceria com a Rádio Unicamp. E pra ficar por dentro de tudo o que produzimos, acompanhe a gente nas redes sociais. Estamos no Facebook, facebook.com/oxigenionoticias – tudo junto e sem acento, e no Instagram e no Twitter, basta procurar por Oxigênio Podcast. Rafael: Nós também temos um site, o oxigenio.comciencia.br – e o comciencia é com M de Maria no meio, tá? O site tá de cara nova só esperando o seu comentário. Aproveita pra deixar lá a sua opinião sobre esse programa. E até a próxima!
24 minutes | Oct 8, 2021
#135 – O lixo nosso de cada dia
Somos grandes produtores de lixo, principalmente nós, que vivemos nos centros urbanos. Segundo uma pesquisa da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (ABRELPE), em 2019 cada brasileiro produziu quase 400 quilos de lixo. No Brasil há uma Politica Nacional de Resíduos Sólidos, que preconiza, na verdade, a não geração e a redução desse tipo de resíduo. Mas como é impossível não gerar nada de lixo, a próprio PNRS prevê uma série de estratégias de gestão e gerenciamento consideradas adequadas para o destinho do resíduo, como por exemplo o encaminhamento para as cooperativas de reciclagem. Mas nem todos os resíduos sólidos terão esse destino, e a política para esse material não é tão simples. Neste episódio do Oxigênio você vai ouvir também sobre quais as possíveis formas da sociedade participar das decisões relativas aos resíduos sólidos. A Fernanda Capuvilla e o João Bortolazzo contam pra gente quais são. Eles entrevistaram o Marco Aurélio Soares de Castro, professor da Faculdade de Tecnologia da Unicamp, a Áurea Aparecida Bueno, presidente na cooperativa Coreso em Sorocaba e o Rodrigo Sanches Garcia, promotor de justiça do Ministério Público de São Paulo. A Ana Augusta Xavier também participou da produção das entrevistas e da elaboração do roteiro e os trabalhos técnicos foram realizados pelo Gustavo Campos e pelo Octávio Augusto Fonseca. Roteiro João: Oi, eu sou João Bortolazzo e sou um dos apresentadores do episódio de hoje. Eu não te conheço pessoalmente – embora tenha pensado em você pra produzir esse episódio – mas, se me pedissem pra adivinhar alguma atividade que você fez hoje eu diria que você… produziu lixo. Mas calma, que eu não tô te acusando de nada não. Na verdade tô, mas você não está sozinho ou sozinha, nessa.  Fernanda: Na verdade todos nós somos grandes produtores de lixo, né? Principalmente nós que vivemos em áreas urbanas. Uma pesquisa da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais mostrou que, no ano de 2019, cada pessoa produziu em média 379 quilos de resíduos sólidos urbanos. Dá mais de 1 quilo de resíduo por dia, lembrando, por pessoa!  João: Sim, é muita coisa. E esse resíduo não “desaparece” magicamente depois que você tira ele de dentro de casa. Já parou pra pensar o que acontece depois do coletor ou da empresa de limpeza urbana levar o lixo embora? E aí, você se sente responsável por esse “lixo” que produz diariamente? Fernanda: É sobre isso que vamos falar nesse episódio. O que são Resíduos Sólidos Urbanos, qual o nosso papel enquanto geradores desse lixo e como a sociedade em geral pode participar da gestão de todo esse material? Eu sou a Fernanda Capuvilla e esse é o Oxigênio. [Vinheta do oxigênio] João: Bom, vamos começar do começo. A gente comentou que todos nós geramos lixo, mas, de acordo com a legislação, o termo correto é resíduos sólidos. Os resíduos sólidos,  Marco Aurélio: Podem ser entendidos como materiais, substâncias, objetos, que resultam de atividades humanas em sociedade. Fernanda: Esse é o  Marco Aurélio Soares de Castro, professor da Faculdade de Tecnologia da Unicamp, que desenvolve pesquisas na área de gestão e gerenciamento de resíduos sólidos. Ele explicou um pouco sobre a Política Nacional de Resíduos Sólidos, a PNRS, estabelecida na Lei 12.305 de 2010. João: A PNRS classifica os resíduos sólidos de acordo com a sua origem e periculosidade. Quanto à periculosidade eles podem ser, bem, não perigosos ou perigosos, sendo os perigosos aqueles que podem causar danos à saúde humana ou ao meio ambiente.   Fernanda: Se considerarmos a origem dos resíduos, teremos diversas classificações. Nesse episódio nós vamos tratar dos resíduos sólidos urbanos, que são aqueles que englobam os resíduos domiciliares e os de limpeza urbana. Marco Aurélio: eu costumo falar que o resíduo domiciliar a gente gera da porta pra dentro, e o que a gente eh eh gera da porta pra fora é limpeza urbana, a hora que a gente junta esses dois, no entender da lei, a gente tá falando de resíduos sólidos urbanos. João:  Da porta pra dentro, a gente gera resto de alimentos, embalagens, lixo do banheiro, e por aí vai… Da porta pra fora, os resíduos vêm principalmente de varrição de calçadas, poda de árvores, roçado, limpeza de bueiros, entre outros… Fernanda: Pode parecer confuso, mas tem alguns tipos de resíduos que, apesar de serem gerados nas cidades, não estão colocados na legislação como resíduos sólidos urbanos. Eles recebem outras classificações, como por exemplo os resíduos da construção civil, do saneamento básico, de serviços da saúde, de indústrias, de transporte, e outros.  João: Segundo o Marco Aurélio, a legislação tem algumas falhas e não engloba todos os resíduos gerados pelas atividades humanas, inclusive alguns que a gente nem pensa como resíduo.  Marco Aurélio: A gente fala até “meio” brincando e meio sério é que, até o final da atividade humana em sociedade gera resíduo, porque a gente precisaria também considerar os resíduos gerados em cemitérios né, agora entrando num assunto sério, os resíduos cemiteriais, por exemplo, eles nem são abordados na política nacional, não tem definição né, não é, não há menção a esse tipo de resíduo. E tem outros resíduos que são gerados, por exemplo, em em estabelecimentos comerciais, em residências, etc, que são os resíduos eletroeletrônicos, então eles não tão ali definidos dentro do corpo da lei, mas eles estão entendidos como aqueles que precisam passar por um sistema de logística reversa. Fernanda: Bom, mas retomando, pra onde vão os resíduos sólidos urbanos? Pra começar, a Política Nacional de Resíduos Sólidos recomenda a seguinte ordem de prioridade: primeiro, vem a não geração do resíduo, ou seja, a nossa primeira atitude deveria ser tentar ao máximo não produzir resíduos. Em segundo vem a redução da quantidade de resíduo gerado. João: Depois vem a reutilização, a reciclagem, o tratamento dos resíduos sólidos, e por último a disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos. Como você deve imaginar, não é exatamente isso que acontece na maioria dos municípios brasileiros. Marco Aurélio: então perceba que de todas as estratégias possíveis, isso levando em conta o resíduo que já foi gerado porque a PNRS também preconiza a não geração, e a redução, a gente tem uma série de estratégias de gestão, gerenciamento consideradas adequadas para o resíduo, mas o que a gente tem na melhor das hipóteses é disposição em aterro, aterro sanitário. Tem os aterros controlados, e o lixão. O lixão é um tipo de aterro sanitário que qualquer um pode projetar, porque basta você descartar o seu saco de lixo, o seu caco de telha, o seu resto de construção num terreno baldio, e você tem um potencial lixão se instalando, né?  Mesmo em muitas cidades que tem um serviço de coleta funcionando redondinho, muitas vezes encaminham pra essas áreas. Então não tem um preparo do terreno, não há uma impermeabilização de fundo, o resíduo não é compactado, não é coberto com terra, e atrai animais né e uma série de coisas. E o aterro controlado é um lixão melhorado, que na melhor das hipóteses eles cobrem com terra né, fazem alguma contenção nesse sentido, mas também não é uma forma adequada. Fernanda: Esses resíduos dispostos de maneira inadequada são um problemão, porque podem poluir as águas, o solo e até mesmo o ar, afetando diretamente a saúde das pessoas.  João: É, Fernanda, quer saber o tamanho do problemão? Segundo dados da ABRELPE, a  Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais, 40,5% dos resíduos sólidos urbanos gerados no Brasil em 2019 não tiveram destino ambientalmente correto, que é o que a legislação preconiza. Isso significa que mais de  29 milhões e 500 mil toneladas de resíduos foram parar onde não deviam.  Fernanda: A gestão correta dos resíduos é boa pra todo mundo. Além de contribuir com o meio ambiente e de oferecer matéria-prima para empresas que se beneficiam da reciclagem, ainda é fonte de renda pra muitas pessoas. Áurea: Não indo para o aterro, ele acaba gerando renda para os trabalhadores de materiais recicláveis. Meu nome é Áurea Aparecida Bueno. Tenho 53 anos. Trabalho já há 18 anos com cooperativa e atualmente estou como presidente na cooperativa Coreso em Sorocaba. João: A Coreso é a Cooperativa de Reciclagem de Sorocaba, que conta com 55 cooperados, a maioria mulheres, mães que sustentam seus lares. Muitas delas são haitianas, que vieram pro Brasil em busca de melhores condições de vida e ajudam suas famílias que se encontram ainda em seu país.  Fernanda: Assim como a cooperativa que a Áurea preside, existem outras milhares no Brasil, sem contar os catadores que atuam de forma individual.  Uma estimativa do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) era de que cerca de 800 mil pessoas atuavam como catadores no ano de 2019. A atividade de reciclagem é um importante instrumento de geração de renda que garante a sobrevivência de muitos brasileiros, sendo um mecanismo de inclusão social.  João: Estes trabalhadores têm um papel fundamental na cadeia de reciclagem e são reconhecidos como agentes ambientais imprescindíveis para a sustentabilidade e gestão de resíduos. Além disso, a atuação deles em campanhas de sensibilização ambiental colabora com o desenvolvimento dos programas de coleta seletiva, pois ajuda na obtenção de um material reciclável mais limpo e melhor acondicionado, que vai ter um valor de revenda maior. Com isso, mais material acaba sendo reciclado e há maior geração de renda pros catadores. Fernanda: Mas os catadores são apenas uma parte dos atores envolvidos na gestão dos resíduos sólidos urbanos. A PNRS fala em responsabilidade compartilhada, ou seja, tanto fabricantes quanto importadores, distribuidores, comerciantes, consumidores e titulares dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos são responsáveis pelo ciclo de vida dos produtos.  João: Na prática isso significa que, antes mesmo de lançar um produto, as empresas deveriam pensar em todos os possíveis resíduos que ele pode gerar, desde o seu processo de produção até a embalagem. Escuta o que a Áurea falou sobre isso… Áurea: As empresas que produzem alguns tipos de material deveriam de ter consciência e mudar a suas embalagens para que eles fizessem um material que se transformasse em reciclável porque algumas empresas… vou dar um exemplo do pacote de macarrão, aquele pacotinho que faz barulho, ele acaba indo pro aterro, por que? Porque ele não é um material que é reciclável. Então, a culpa desse material não ser reciclável é da empresa. Então, a empresa teria que refazer a matéria prima deles para poder fazer esse material se tornar reciclável.  Fernanda: Foi com uma musiquinha assim, meio country, que lembra fazenda, que uma indústria de alimentos fez o vídeo promocional da nova embalagem desenvolvida pra um dos seus principais produtos: o leite. Nesse vídeo, entre imagens dos laboratórios de qualidade e da linha de produção, pipocam na tela palavras que, segundo a empresa, caracterizam essa nova embalagem e garantem que ela é uma boa opção, pro consumidor e pro meio ambiente: Qualidade. Inovação. Dupla camada protetora. Sem contato manual. Lacre de segurança. Tampa de rosca. “100% reciclável”. João: É, não é bem assim… Bastou uma conversa rápida com os catadores pra gente entender que essa garrafa de leite vendida como 100% reciclável, na maioria das vezes acaba indo parar nos aterros sanitários. Por mais que o tipo de material usado seja passível de reciclagem, em muitas regiões não há compradores interessados nele. A indústria podia ter feito essa pesquisa antes né? Fernanda: Sim, e também existem alguns bens e serviços que geram resíduos durante sua fabricação que não são possíveis de reutilização, não tendo destinação adequada após sua entrada no processo produtivo. Um exemplo são retalhos de alguns produtos têxteis e de couro tratado usados no revestimento de estofados, que não podem ser incinerados e nem aterrados de qualquer maneira porque podem contaminar o solo ou emitir gases tóxicos. João: Nestes casos, o processo de fabricação deveria ser repensado, porque se não há destinação para o resíduo da produção desse item, o problema não está na destinação e nem no produto em si, mas sim no material utilizado. Fernanda: Ok, mas estamos falando de responsabilidade compartilhada, né? Quem mais compartilha a responsabilidade e onde a gente entra nessa história? Bem, lembra que lá no começo do episódio falamos que cada pessoa gera mais de 1 quilo de lixo por dia? Será que a gente pensa qual vai ser o destino de tudo isso antes de comprarmos algum produto? João: Pois é, eu acho que não. E se você tá aí se justificando “ah, mas eu separo meu lixo reciclável do lixo orgânico”, sinto dizer que a nossa responsabilidade vai muito além disso. Aqui vai um exemplo: somos responsáveis pela destinação adequada de todas as lâmpadas que usamos em nossas casas, depois que elas deixam de funcionar. De acordo com a PNRS, como consumidor final, eu devo levar essa lâmpada até a loja onde comprei, pra que o comerciante possa devolver pro fabricante e, assim, fecharmos a cadeia de responsabilidade.  Fernanda: É isso que se chama de logística reversa, um instrumento desenvolvido pelo poder público pra obrigar todas as partes envolvidas no consumo de bens e serviços, desde o fabricante, passando pelo comerciante e chegando ao consumidor, a participarem de forma conjunta dessa responsabilidade compartilhada. E isso não vale somente pras lâmpadas, baterias e pilhas, mas também qualquer outro item que consumimos.   João: E como consumidores finais, também podemos pressionar as indústrias pra que sejam mais conscientes, mudando nossos hábitos de consumo e evitando comprar produtos de empresas que não se preocupem com a geração e a destinação de seus resíduos. Fernanda: Vale lembrar também de uma das regras que o Marco falou no começo do episódio, que é a de não gerar mais resíduos. Ou seja, não adianta fugir, e dá até pra parafrasear o Pequeno Príncipe: tu te tornas eternamente responsável pelo lixo que geras. João: Bom, no final das contas é tudo sobre mim, né? Eu sou o responsável por todo lixo que eu gero e tenho que pensar em tudo, desde o processo de fabricação, supervisão, utilização e destinação. Uma cacofonia de obrigações. Fernanda: Na verdade, não é bem assim. O Poder Público também tem seus mecanismos de prevenção e controle ambientais. O que resta para nós é apenas a conscientização e seguir as medidas de sustentabilidade que, no fim das contas, somos nós mesmos que elaboramos junto da administração das nossas cidades. João: Nós mesmos? Como assim? Eu nunca participei de nenhum tipo criação de norma ou regra para nada. Você já? Fernanda: Já sim. Você já ouviu falar em Audiência Pública?  Rodrigo: As audiências públicas, elas estão dentro dessa concepção de que a população tem o direito de participar de determinadas decisões. Então, o conceito da audiência pública é um conceito de “entre aspas” oitiva da população. É um momento em que a população toma conhecimento de um determinado é, fato, antecipadamente, ela tem acesso aos determinados materiais, mas ela toma conhecimento de um determinado fato e ela vai opinar sobre aquele determinado fato. João: Esse que você ouviu é  o promotor de justiça do Ministério Público de São Paulo, Rodrigo Sanches Garcia, que faz parte do Grupo de Atuação e Defesa do Meio Ambiente, do GAEMA de Campinas. O GAEMA é o Grupo de Atuação Especializada que foi proposto pelo Ministério Público para atuar de forma preventiva e também repressiva na proteção do meio ambiente, habitação e urbanismo.  Fernanda: Já que estamos falando de  Audiência Pública, é bom sempre ficar atento ao site e às redes  sociais da prefeitura do seu município, porque é ali que serão anunciadas as datas, assuntos e conteúdos sobre o tema das Audiências Públicas que estão por vir. João: E nessas Audiências Públicas não se debate apenas a gestão de resíduos sólidos,  mas também vários outros temas pertinentes à vida dos cidadãos no município, como saneamento, educação, saúde, infraestrutura, entre muitos outros.  Fernanda: Funciona assim: um assunto discutido em uma audiência pública hoje pode ser um plano que será desenvolvido nos próximos 10 anos. Então, se eu não me manifestar agora, vou ter que esperar outros 10 anos para falar sobre esse assunto de novo. João: Pois é, por isso é importante participar ativamente e ter conhecimento desses instrumentos de manifestação da nossa voz enquanto população, pra acabar de uma vez por todas com o mito de que nossa opinião não é ouvida. Depois não adianta só reclamar de uma situação sem efetivamente ter tomado atitude e buscado os meios pra expor nossas necessidades exigindo o cumprimento dos nossos direitos. Rodrigo: O que é dito, o que é colocado na audiência pública pela população, ele não é vinculativo para o poder público. Então, muita gente fala assim: “não adianta eu ir na Audiência Pública, porque tudo que eu falo lá não adianta nada. Ninguém respeita, ninguém obedece.” Não é assim, porque o que a população, o que é colocado, o que é criticado, ela pode ter uma fala propositiva de acréscimo, ela pode ter uma fala de pedido de supressão de partes do projeto, ela pode ter uma fala apenas de desabafo, o que ela fala, ela que eu digo a população, né? O que as pessoas falam, ela tem a finalidade de fazer com que o poder público reflita sobre aquilo que ele está colocando. Então, ele não é vinculativo, mas o poder público tem que de forma fundamentada rebater aquela informação.  Fernanda: Ouvindo tudo isso, dá pra entender melhor como funciona a responsabilidade compartilhada e também compreender o nosso papel social na gestão dos resíduos sólidos urbanos dentro dos municípios.  João: Todos nós temos responsabilidades, não importa onde a gente esteja na cadeia de geração de resíduos. Podemos ser um simples usuário do sistema de coleta pública, ou um representante do poder público, mas pra que tenhamos bons resultados na gestão desses materiais, todos nós devemos participar ativamente das decisões.  Rodrigo: Todos nós somos parte dessa gestão. Seja lá na ponta, porque nós estamos separando adequadamente um resíduo. Seja lá na ponta, porque nós estamos gerando um resíduo que não é separado, né? Ou que não estamos fazendo uma logística adequada separando as baterias de celulares, separando as nossas pilhas, separando nossos pneus, separando nossos sofás, colchões e tudo mais que a gente sabe que, é… como sociedade, uma hora você gera aquele resíduo. E aí o que você faz com ele? Então, existe uma coparticipação do poder público e particular. Fernanda: Bom, mas o caminho pra uma gestão adequada de todos os resíduos que geramos é longo. Esse assunto dá muito pano pra manga e ainda tem muita coisa a ser discutida dentro do tema sustentabilidade. Como falamos nesse episódio, temos problemas de destinação de resíduos que ainda sequer tem solução. João: E um assunto que basicamente tem a ver com a forma como vamos continuar existindo nesse planeta e quais medidas devem ser tomadas agora para que isso seja possível, não pode ficar apenas em um episódio de podcast, em uma roda de conversa, ou em  eventos específicos… Fernanda: A conscientização sobre o impacto ambiental dos resíduos sólidos deveria começar cedo, já que esse tema é tão ou mais importante do que aprender a ler, escrever, fazer contas… Até porque só poderemos fazer tudo isso se ainda tivermos onde viver, ou melhor, existir. (risos?). E é nesse caminho que a Áurea, a catadora que conversou com a gente, acredita….. Áurea: O que temos pra hoje não é suficiente. Por que? Porque as pessoas não tiveram a educação ambiental de separar o material, mandar para uma cooperativa, é… dar sustentabilidade, dar renda para as pessoas, emprego e salvar o mundo de tanto material que tá sendo aterrado.  Eu acho que a educação ambiental é… de extrema importância na vida de todas as pessoas; no mundo, na verdade. Eu acredito que deveria de existir uma matéria na escola falando sobre educação ambiental, porque é com as crianças que a gente é… começa a ensinar, porque são eles que levam pra dentro de casa a educação, pros pais, pros avós, enfim, são as crianças. A gente tem que começar a entender que as crianças, se você falar esse papel não pode jogar no chão, ele não vai jogar. E ele vai ensinar os mais velhos que também não pode jogar e que aquilo é reciclável.  João: O episódio de hoje fica por aqui. Agradecemos a todos que conversaram com a gente nesse programa e a você, que nos acompanhou até o final.  Fernanda: Ele foi apresentado por mim, Fernanda Capuvilla, e pelo João Bortolazzo. Nós também participamos da produção das entrevistas e do roteiro, junto com a Ana Augusta Xavier. A revisão do roteiro e a coordenação são da professora Simone Pallone, do Labjor/Unicamp, e os trabalhos técnicos são do Gustavo Campos, bolsista SAE do Labjor, e do Octávio Augusto, da Rádio Unicamp.  João: As músicas utilizadas no episódio são da Biblioteca de Áudio do Youtube e o áudio é de uma audiência pública do município de Taperoá na Bahia, disponível no Youtube. A arte de divulgação foi criada pela equipe deste episódio. Fernanda: Você já sabe, mas não custa lembrar que o Oxigênio é o podcast de ciência e tecnologia da Unicamp, realizado pelo Labjor em parceria com a Rádio Unicamp. João: E pra ficar por dentro de tudo o que produzimos no Oxigênio, acompanhe a gente nas redes sociais. Estamos no Facebook, (facebook.com/oxigenionoticias – tudo junto e sem acento), no Instagram (@radiooxigenio) e no Twitter (@oxigenio_news). Aproveita pra deixar lá a sua opinião sobre esse programa. Fernanda: E se você ainda não viu as mudanças no nosso site, veja lá em oxigenio.comciencia.br. E mande seus comentários. Obrigada e até a próxima!
30 minutes | Sep 11, 2021
#134 – É tudo mato? As plantas que não vemos
39 minutes | Aug 26, 2021
#133 – Extensão universitária pra quê?
A Extensão é um dos três pilares da universidade pública, ao lado do Ensino e da Pesquisa. Embora pouco divulgados, vários projetos de extensão são desenvolvidos todos os anos pelas instituições, estreitando as relações com comunidades vulneráveis, fortalecendo a formação em algumas áreas do conhecimento, promovendo troca de conhecimento entre o público acadêmico e pessoas, organizações, empresas que estão fora da universidade. A resolução do Ministério da Educação que estabeleceu que a partir de 2021 10% das atividades de graduação tenham que ser dedicadas à extensão universitária aumentou o interesse em saber o que é, para que serve e como se faz extensão. Neste episódio do Oxigênio, a Rebeca Crepaldi e o João Bortolazzo trazem algumas respostas e falam de experiências que podem servir de modelo. As entrevistas do programa foram feitas com a professora Maria Cristina Crispim, da Universidade Federal da Paraíba, a doutoranda Luana Viana, chefe da divisão de rádio da Universidade Federal de Ouro Preto, a Pró-reitora de Extensão, Cultura e Assuntos Comunitários, Maria Santana Milhomem e com a Vitória Feijó Macedo e com o João Gabriel Pimentel, que fazem parte da Empresa Júnior EPR Consultoria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.  _______________________ Roteiro Rebecca: João, você sabe qual é a contribuição da universidade pública para a sociedade?  João: Bom, até onde eu sei, na universidade pública os estudantes têm a oportunidade de adquirir conhecimento e sair capacitados para atuar em diversas profissões, das mais distintas áreas. Eles podem atuar em empresas, indústrias, hospitais, escolas, institutos de pesquisa, agências de comunicação… contribuindo de muitas formas para o desenvolvimento e geração de bem-estar e riquezas para o país. Rebecca: Isso mesmo! Você está falando sobre o “ensino”, que é um dos pilares da universidade pública. Mas a universidade pública é composta por mais dois pilares: a pesquisa científica, que é a precursora do desenvolvimento do país, provendo tecnologias, patentes e estratégias, que vão desde a descoberta de um medicamento até a elaboração de planos de inclusão social; e a extensão, que através do trabalho prático dos alunos com professores e funcionários, presta serviços para a população em geral, oferece cursos e mais uma ampla gama de atividades. João: Eu sou o João Bortolazzo. Rebecca: Eu sou a Rebecca Crepaldi. João: E, no episódio de hoje, nós vamos falar sobre a importância da extensão universitária, para o que ela serve, quem faz e quem participa dessas ações. Rebecca: Para tratar desse tema, entrevistamos os alunos Vitória Feijó Macedo e João Gabriel Pimentel, que fazem parte da Empresa Júnior EPR Consultoria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; também conversamos com a Professora Maria Cristina Crispim, do projeto de extensão “Fossas Ecológicas”, da Universidade Federal da Paraíba. Além disso, falamos com a doutoranda Luana Viana, que é chefe da divisão de rádio da Universidade Federal de Ouro Preto e coordenadora do projeto “Pequenos Ouvintes”; por fim, conversamos com a Pró-reitora de Extensão, Cultura e Assuntos Comunitários, Maria Santana Milhomem, responsável pelo “Cursinho Popular da Universidade Federal do Tocantins”. João: Segundo o Artigo 206, parágrafo segundo, “O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”. Já no Artigo 207, a Constituição define que “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e” que “obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”. Rebecca: Em outras palavras, isso significa que a universidade deve ensinar, realizar pesquisas em todas as áreas do conhecimento e estender para a população o produto dessas ações, mantendo o interesse público e coletivo como característica principal. As universidades são ambientes de troca entre a comunidade interna, que inclui docentes, funcionários e alunos, com a comunidade externa, formada pela população em geral. João: Essas trocas acontecem pela prestação de serviços gratuitos ou a baixo custo em saúde, lazer, cultura, educação, entre outras áreas. E também nas relações com o setor privado, por exemplo, em parcerias com a indústria, no desenvolvimento de alguma tecnologia, ou no licenciamento de uma patente criada por pesquisadores… A extensão engloba, ainda, parcerias com governos, principalmente locais, mas também em nível estadual e federal. Você sabia, Rebecca, que o programa Bolsa Família foi criado na Unicamp, pela pesquisadora Ana Fonseca, do Núcleo de Estudos em Políticas Públicas? Rebecca: Puxa, que legal! É sobre isso. Além da prestação de serviços, das parcerias com comunidades, governos, empresas, e outros setores da sociedade, os projetos também servem para os alunos colocarem em prática o que aprendem durante a graduação e pós também, ampliando sua visão de mundo e também sua rede de contatos.  João: Pois é, Rebecca. E você sabia que atuar na extensão antes era uma opção para os alunos, mas a partir de agora é obrigação? Em 2018, o Plano Nacional de Educação definiu que as atividades de extensão devem compor, no mínimo, 10% (dez por cento) do total da carga horária curricular estudantil, dos cursos de graduação. Essa determinação, após um adiamento, se tornou obrigatória a partir de 2021. E sendo assim, as instituições, os docentes e os próprios alunos, precisam ampliar a oferta de parcerias com diferentes setores da sociedade para permitir que a exigência seja cumprida. Os alunos podem ganhar muito com isso e por outro lado, a sociedade também. Afinal, serão mais oportunidades de ampliar os vínculos com a universidade, beneficiando a todos. Rebecca: E é por esses motivos que, hoje, mais do que nunca, é fundamental entendermos o papel da extensão universitária na vida dos graduandos e também na sociedade. Para isso vamos ilustrar alguns tipos de experiências de extensão, começando pela nossa conversa com a professora Maria Cristina Crispim, coordenadora do projeto “Fossas Ecológicas”, da Universidade Federal da Paraíba. João: O projeto “Fossas Ecológicas” surgiu visando a construção de fossas de tratamento de esgoto para promover a despoluição dos rios na região próxima à Universidade Federal da Paraíba. Como consequência, vem melhorando a qualidade de vida da população e trazendo muitos benefícios para além do saneamento. Batendo um papo com a professora, ela explicou melhor pra gente qual é a trajetória do projeto. Cristina: A gente busca melhorar a qualidade de água dos rios. E a gente viu que um dos maiores problemas dos rios é a entrada de esgoto não tratado, esgoto doméstico. A gente tem muito esgoto a céu aberto. Então, em consequência disso, nossos rios, eles estão poluídos, são esgotos a céu aberto, têm mau cheiro, têm muito pouco peixe, enfim. E aí, nosso objetivo é reduzir essa quantidade de poluição que chega nos rios. E uma das formas que a gente viu de fazer isso a baixo custo era a gente reter esses nutrientes fazendo o tratamento do esgoto em cada domicílio. Então, ao invés da gente tá coletando esgoto, levando esgoto para uma estação de tratamento de esgoto, não fazendo o tratamento adequado, a gente propõe o que já é proposto pela permacultura, que é a construção das fossas ecológicas. E aí, a gente resolveu fazer esse projeto de extensão porque acha que levando esse conhecimento às pessoas, principalmente a quem mora na beira dos rios, a gente consegue melhorar o rio que não recebe esgoto, mas melhorar muito a vida das pessoas e a qualidade de vida, porque o esgoto que escorre a céu aberto, ele é ruim para tudo, né? A qualidade de vida é ruim, a saúde fica ruim.  João: Sobre um panorama geral, existem vários tipos de fossas, como a fossa séptica, fossa seca e sumidouro, que apesar de possibilitarem o tratamento do esgoto, não garantem que, durante sua manutenção, não haja riscos de poluição, tanto do local da fossa quanto do local de despejo. O que o projeto Ecofossas propõe de inovador é que sejam construídas fossas sustentáveis, desde a captação até a transformação dos resíduos, resolvendo o problema de destinação de dejetos líquidos e sólidos humanos, e viabilizando a recuperação do entorno de onde ela é implantada. Essas fossas, ao fazerem o tratamento do esgoto diretamente no local, evitam que as chamadas “águas cinzas” sejam despejadas em rios, diminuindo a quantidade de moscas, mosquitos e outros vetores de doenças de transmissão hídrica. Além disso, elas permitem o reuso da água através da irrigação das bananeiras plantadas ao redor. Por fim, as fossas não enchem e nem geram resíduos, solucionando a necessidade de manutenção de limpeza. Cristina: Com o auxílio dessas fossas e o tratamento por biorremediação no Rio do Cabelo, a gente conseguiu transformar uma água que as nascentes desse rio são esgotos, né? Esgotos Presídios Mangabeira, esgotos dos condomínios fechados que são lançados na segunda nascente do rio, a água ficou transparente. O mangue nasceu na praia. Aumentou em nove espécies de peixe. Tinha seis espécies de peixe, passou a ter quinze. Então, tratamentos muito simples e muito baratos trazem um grande retorno tanto em questões sociais quanto ambientais. Então, daí a importância da extensão, né? Que objetiva levar esses conhecimentos que têm na academia, para que as pessoas que realmente podem aplicar esses conhecimentos apliquem e com isso melhorem a qualidade ambiental e a qualidade de vida. João: Cristina também comentou que o projeto avalia a água de poços nas casas onde as fossas são construídas. Segundo a bióloga, em um poço fundo com 30 metros e um raso com 12 metros, antes da construção das fossas, havia uma grande quantidade de nitrato, de fosfato de amônia e de nitrito. Um ano depois da construção do dispositivo, essa quantidade de poluentes encontrados na água diminuiu consideravelmente. Isso foi um resultado positivo, pois o nitrito não é tóxico, mas quando ingerido se transforma em uma substância cancerígena. Cristina: Então se a gente conseguir reduzir a quantidade de nitrato que tem na água do lençol freático, a água subterrânea, a água de consumo através dos poços também melhora muito para a saúde. Então, com isso a gente tá, não só melhorando a água do rio, mas também melhorando a quantidade de água no lençol freático que é utilizada nos poços, que as pessoas têm em casa. Então, assim, o efeito em cascata que tudo isso tem é muito grande. Basta, as pessoas quererem fazer, porque o custo é muito baixo. Então, uma fossa normal, que custa cerca de mil, mil e duzentos reais, a gente faz com 500 reais, 600. Então, é quase metade do preço de uma fossa convencional e é muito mais funcional. Além de não poluir o ambiente, ele produz alimentos em cima, a água evapora para atmosfera, a fossa não enche, é muito bom. Eu sou apaixonada por essas fossas também. Então, em dois três dias você tem sua fossa pronta. E aí planta a bananeira e podes plantar a horta a couve o tomate a alface, o que você quiser que não vai ter contaminação.  João: As fossas ecológicas são um bom exemplo de sustentabilidade, já que são um sistema que, além de não gastar recursos naturais, ainda os protege. Contudo, ele enfrenta um problema: a falta de recursos. Perguntei à professora como o projeto é mantido. Cristina: Não tem verba. A única verba que tem é uma bolsa que dão pros alunos e esse ano, infelizmente, nem bolsa consegui. Então, a gente trabalha muito na boa vontade. Os alunos, com essa questão do apoio, né, que eles eles dão, principalmente essa questão das mídias, e as pessoas é que bancam o material que tem que comprar, bancam a construção que tem que fazer e isso acaba sendo mais individualizado mesmo. Esse ano foi muito triste porque eles querem que haja integração entre a pesquisa, a extensão e a educação. E como eu não escrevi que vai ter essa integração, eles consideraram que não tinha, apesar de eu colocar no texto que o projeto ele analisa a água dos poços dessas pessoas antes e depois de fazer a construção das fossas. Então, isso é pesquisa. E a gente tá fazendo um processo de educação com essas pessoas. Isso é educação. E a gente tá levando tudo isso a essas pessoas. Isso é extensão. E aí, alguns avaliadores colocaram zero nessa avaliação e isso fez com que baixasse a nota do projeto. Então eu fui aprovada, mas eu não consegui bolsa. E é triste, né? Porque é muito importante a presença do aluno bolsista. E eu to com quase vinte alunos, para você ter uma noção, todos voluntários. Essas bolsas são pros alunos. Então, eu ainda fico mais triste por isso, né? Porque os alunos realmente precisam desse incentivo.  João: Mesmo sem financiamento e sem a bolsa, Cristina enfatizou que os alunos continuam participando do projeto e auxiliaram bastante durante a pandemia, principalmente com as redes sociais, o que fez o Ecofossas ganhar um alcance que antes não tinha, quando trabalhava apenas no presencial, longe das redes. Com isso, outros estados, como Alagoas, Bahia, Rio Grande do Norte e Pernambuco, tomaram conhecimento do projeto e pediram auxílio para implementarem as fossas. Assim, foi construído um novo modelo de trabalho, sob orientação à distância. De acordo com Cristina, a pessoa registra fotografias do local e a equipe vai auxiliando na construção, no dimensionamento, e também no esclarecimento de dúvidas. E o projeto está tendo tanto sucesso que os planos futuros envolvem levar o Ecofossas para África e também transformar em um sistema de tratamento de esgoto em bairros. Cristina: Eu tenho um aluno de doutorado que tá tentando levar o projeto para a terra dele, que é Guiné-Bissau. Então, a gente tá com essa perspectiva de poder ajudar, com as nossas orientações, também pessoas de outros países, né? Na África, no caso. A gente pode adaptar essas fossas em relação à dimensão, então depende do número de pessoas da casa. A gente pode dimensionar para um condomínio, a gente pode dimensionar para um prédio, a gente pode fazer as fossas adaptadas ao tamanho que for necessário. E a gente tem até um projeto de fazer essas fossas ecológicas, que é uma adaptação que a gente fez, e até já gerou, vai gerar uma patente. De fazer várias casas num sistema de tratamento desses. E aí, a gente consegue, por exemplo, é, tratar 600 casas, 1.000 casas, ou seja, posso tratar um bairro inteiro. E a gente faz esse tratamento e, em cima dessa fossa, a gente pode fazer ou uma horta comunitária ou um jardim, porque além das bananeiras a gente pode usar as plantas helicônias, treliças, as paqueviras, que são plantas que dão flores lindíssimas e a gente pode incluir isso no paisagismo da cidade. Então, imagine que no final de cada rua a gente tivesse uma fossa dessas que fosse uma horta comunitária para aquela rua. Então, tudo isso é possível. E a gente também resolveria o problema de saúde, resolveria o problema de qualidade ambiental, né? Melhoraria a qualidade de água dos rios, tudo isso em simultâneo.  Rebecca: É incrível como um projeto pode ser tão plural, né? Despoluição de rios, garantia de saneamento básico, diminuição de doenças de transmissão hídrica… até segurança alimentar as fossas ecológicas oferecem! Mudar realidades para melhor, acho que eu resumiria esse projeto dessa forma. Contudo, como nem tudo é perfeito um dos desafios é a falta de divulgação desses projetos. Como a Cristina citou, as comunidades beneficiadas foram comunidades ao redor da Universidade Federal da Paraíba ou comunidades indicadas por conhecidos de outros estados. Então meio que a divulgação funciona pela rede de contatos, né? Mas um projeto dessa conjuntura, assim como muitos outros que existem, deveriam ter uma divulgação mais ampla e eficaz.  João: Concordo com você, Rebecca. Eu não tenho e acho que mesmo a comunidade interna das universidades, tanto no estado de São Paulo quanto em outros estados do país, não tem conhecimento sobre os projetos que estão em andamento. Não tem uma plataforma com essa informação centralizada. Para encontrar mais informação sobre qualquer projeto, precisamos, primeiro, encontrar o site ou até mesmo as mídias sociais do projeto, para saber como ele funciona. Algumas universidades disponibilizam informação em sites das pró-reitorias de Extensão, mas muitos projetos não aparecem porque não passam por essas instâncias. Rebecca: Pra falar sobre essa dificuldade no acesso à informação sobre os projetos de extensão, falamos com a doutoranda Luana Viana, que é chefe da divisão de rádio da Universidade Federal de Ouro Preto e coordenadora do projeto “Pequenos Ouvintes”. Luana: Sobre os projetos de extensão, é importante a gente ter em mente que eles devem buscar soluções para determinados problemas existentes na sociedade. E como que eles podem se estruturar? A gente pode encontrar esses projetos através de ações de conscientização, capacitação, difusão de informação de tecnologia, cultura, consultorias, enfim, a gente tem uma grande variedade aí de formas com as quais os projetos de extensão podem se apresentar, visando solucionar ou, pelo menos, amenizar os problemas sociais. Os projetos de extensão são uma forma de ampliar a relação entre a universidade e a sociedade, e esse relacionamento, como todo relacionamento, consiste numa via de mão dupla. Então, a ideia é que a Universidade devolva para a sociedade o investimento que ela recebe.  Rebecca: É muito bom saber que o dinheiro investido na universidade através de impostos retornam para a população de forma tão diversa. A extensão não tem finalidade assistencialista. Ela visa o desenvolvimento de populações desfavorecidas, mas também atende outros segmentos da sociedade. Luana: Cada projeto vai atender especificamente um determinado grupo. A gente tem alguns que são mais amplos, que vão atender um número maior de pessoas, mas a gente também tem projetos mais específicos, que vão atuar em segmentos da sociedade. Como exemplo, eu coordeno lá na UFOP o “Pequenos Ouvintes”, que é um projeto de radiojornalismo voltado para crianças. A nossa ideia é fazer, incentivar as crianças o hábito de consumir a linguagem radiofônica, a linguagem sonora, né? E aí esse projeto também é voltado para as crianças, para os pais e para educadores que queiram usar nosso material em sala de aula. Então neste caso, o nosso grupo, ele é mais voltado para um público infantil, para essa faixa de idade das crianças que estão conhecendo, começando a conhecer as coisas, curiosos para aprender determinadas e determinados temas e assuntos. Então a gente tem esses casos, projetos mais amplos e projetos mais específicos.  Rebecca: O “Pequenos Ouvintes” é totalmente gratuito, assim como grande parte da extensão, já que é uma forma de devolver à população o investimento que é feito na universidade. Quando não são, eles tendem a ter um baixo custo ou um preço simbólico para arcar com algum material necessário. Isso é positivo pois garante que todos tenham a oportunidade de se beneficiar dos projetos. Contudo, a falta de conhecimento da sociedade em relação à existência desses projetos ainda é um desafio a ser enfrentado que está intimamente ligado à divulgação. Luana: Geralmente os projetos de extensão eles desenvolvem uma divulgação autônoma. O que significa isso? Que eles estão sim atrelados às universidades, mas eles mesmos gerenciam suas páginas em redes sociais, ou a manutenção de sites próprios ou outras formas de divulgação. Então, isso acaba causando uma dificuldade para que o público conheça todas as ações que são desenvolvidas, né? Naquela cidade, naquela universidade, naquele local. Já que essas informações, muitas vezes, são descentralizadas. Então, eu acredito, assim, que o ideal é que a gente que o projeto vá até as pessoas, né? E não que as pessoas tenham que ficar buscando por eles. Então, assim, eu acho que a ideia seria a gente centralizar de alguma forma. De maneira geral, eu percebo que as próprias universidades têm dificuldade de quantificar os projetos e as suas atividades, né? Porque a gente tem projetos que são diretamente financiados através de bolsas ou de outros editais de incentivo, mas a gente tem muito projeto também que é composto por equipes voluntárias, então acaba que, às vezes, até a própria universidade tem uma dificuldade de falar quantos projetos tem em andamento ali. Então, eu acredito que assim, seria importante a tentativa de unificar essas informações, né? Como eu comecei a falar anteriormente… em um único lugar. Então eu acho que precisa sim de um investimento maior aí para a gente centralizar essas informações. Agora, talvez, através de um aplicativo de algum site, ou impressão e distribuição de cartilhas, contendo informações desses projetos. Mas uma coisa que eu acho que é importante ressaltar, como eu também já tinha comentado, cada projeto possui um público muito específico, e essas características que vão compor a identidade desse grupo, elas não podem ser deixadas de lado nas estratégias de divulgação. Então assim, a ideia é que tenha, sim, um canal que centralize essas informações, mas que também haja estratégias específicas voltadas para cada grupo.  João: A Luana pontuou algo importante: devido aos projetos terem públicos específicos, não seria ideal ter a divulgação deles em um único lugar, precisam ser amplamente divulgados. Mas é fundamental que haja uma centralização dessa informação sobre eles, para que seja mais fácil localizar e até mesmo quantificar e conhecer esses projetos. Imagino que isso poderia ser feito em cada universidade, em cada estado ou até mesmo em um servidor nacional. Rebecca: Eu concordo! Imagina se tivéssemos um aplicativo, em que a pessoa pudesse filtrar por região e, depois, por tipo de serviço? Por exemplo, se eu quisesse aprender algum esporte, eu posso baixar o aplicativo, colocar minha região, preencho alguns dados como minha idade e interesses, e aí a plataforma seleciona os projetos de extensão universitária associados àquela busca. Sonhar é bom, né (risada)?! João: Nossa, seria muito legal! Mas não é todo mundo que tem acesso à internet ou que sabe como usar um aplicativo. Então, é importante que essa divulgação aconteça de uma forma que consiga atingir a todos. E voltando a falar dos tipos de projeto, no próximo bloco iremos apresentar as empresas juniores, uma parte da extensão que fomenta o empreendedorismo universitário! Como vimos no primeiro bloco do episódio, o projeto “Fossas Ecológicas” chega com uma proposta multidisciplinar focada na preocupação com o meio ambiente, ao evitar que os esgotos sejam despejados nos rios, mas também tem um foco social, ao ter como consequência o oferecimento de saneamento básico para comunidades locais.  Mas a extensão universitária se reflete nas mais variadas formas e, agora, nós vamos falar das empresas juniores, que fazem parte do Movimento Empresa Júnior, ou MEJ, como é conhecido informalmente. Esse movimento surgiu na França, em 1967, mas chegou no Brasil em 1986, com a missão de formar, por meio da vivência empresarial, lideranças comprometidas e capazes de transformar a sociedade. Rebecca: As empresas juniores estão ligadas a cursos do Ensino Superior no Brasil e funcionam com a mesma dinâmica das empresas seniores, mas com um diferencial: a oferta de serviços a baixo custo em relação ao mercado. Isso porque elas são formadas por estudantes que estão em busca do aprendizado prático do que veem em sala de aula. As empresas juniores funcionam como um laboratório para os graduandos, que são supervisionados por docentes. No Brasil, desde 2010, o movimento já injetou mais de 70 milhões na economia brasileira, que foram integralmente reinvestidos na educação empreendedora dos próprios estudantes. Atualmente, há cerca de 1.400 empresas juniores, vinculadas a 260 universidades, com mais de 26 mil empresários juniores que já realizaram, aproximadamente, 34 mil projetos. João: Para ilustrar todo esse potencial, conversamos com a Vitória Feijó Macedo e com o João Gabriel Pimentel, que contaram um pouquinho sobre como funciona a EPR Consultoria, a Empresa Júnior de Engenharia de Produção da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Segundo os estudantes, as empresas juniores oferecem um preço social para quem quer contratar os serviços, pelo fato desses serviços serem realizados por estudantes, ainda não formados. O principal objetivo da empresa júnior é promover a prática do que é aprendido na teoria. João Gabriel: É realmente esse problema que todo universitário passa que é: “Como eu vou conseguir experiência para entrar no mercado de trabalho?” e tal. Eu estou aprendendo tudo durante a faculdade, mas quando eu vou pro mercado de trabalho, me exigem experiência. Algo até mais que o estágio apenas. E eu acho que o MEJ encontrou a solução perfeita pra isso, que é realmente a empresa júnior, que é algo muito bem visto no mercado e que te oferece oportunidades de atuar como empresas seniores atuam. Então, fazer projetos, se capacitar, e realmente se desenvolver de uma forma muito grande.  Vitória: A ideia das empresas juniores é a gente prestar serviços que a nossa área de atuação já oferece no mercado afora, mas ainda dentro da universidade. Então, a gente geralmente desenvolve trabalhos que pessoas formadas fariam, por exemplo, mas enquanto estudantes, né? Já aplicando desde o começo do curso e claro com um preço muito abaixo do mercado. Exatamente por sermos de uma empresa que ainda está vinculada à universidade e por ainda sermos estudantes. Mas, de qualquer forma, é uma empresa de 33 pessoas que funciona como qualquer outra. Então, a gente acaba aprendendo muito, desde a parte da gestão interna, que é a gente que tem que comandar, quanto, também, as funções da engenharia de produção. Que às vezes é algo que a gente não vê tanto dentro da universidade. João: Ou seja, como diz a Vitória, é um jeito de vincular o conhecimento acadêmico com a prática empreendedora. E é uma forma desses alunos ajudarem empresas, sejam pequenas, médias e, também, as grandes. Oferecem um trabalho qualificado  a um custo mais baixo, e ao mesmo tempo preparam o estudante para o mercado. É uma relação de ganho mútuo. E sobre a EPR Consultoria especificamente, como uma empresa júnior prestadora de serviços de engenharia de produção, ela atua nas mais diversas áreas, com o objetivo de otimizar os processos industriais ou empresariais, poupando tempo e recursos. Vitória: Então, a gente trabalha com a produção enxuta, né? Uma mentalidade de sempre tentar atuar com o menor recurso possível, de forma mais otimizada, de forma que realmente seja menos custosa e com maior qualidade possível. Quanto tempo duram aqueles processos, como aqueles processos podem ser mais rápidos na indústria, por exemplo, às vezes pensar num layout diferente, como melhor posicionar as máquinas ou alguns materiais, pros colaboradores se deslocarem menos, os caminhões nas fábricas se deslocarem menos. João: E os estudantes contaram pra gente sobre um caso de sucesso em que essa metodologia foi aplicada. A equipe digitalizou os cadastros de vacinas de um posto de saúde, otimizando o processo de vacinação. João Gabriel: Eu acho que é bem importante essa parte social, principalmente para as empresas júnior se preocuparem, e esse projeto ele ocorreu no começo de março, a gente começou a execução deles, e era um contexto de superlotação de hospitais na segunda onda do covid que tava surgindo ali, após fevereiro, também tinha a questão da vacina da gripe que acaba tendo outra vacinação junto com a vacina do COVID. E a gente percebeu que muitos centros de saúde, de todas as cidades, acabava que não conseguem gerenciar todos os cadastros, porque eram muitos pacientes, eram muitas vacinas a serem dadas, então, a gente, junto com o centro de saúde, começou a desenvolver um projeto pra facilitar a vacinação pra otimizar esse processo de vacinação que estava sendo tão demorado. E um dos desafios que a gente percebeu dentro desse centro de saúde era a questão do cadastro de novos pacientes, porque era tudo feito muito manualmente.  João: O João Gabriel contou que como o processo era todo manual, ocorria duplicação dos cadastros ou ficavam desatualizados em relação à segunda dose da vacina contra a COVID. Era também muito demorado para analisar a situação de cada paciente. E a EPR resolveu o problema automatizando, de maneira simples, esse cadastro.  João Gabriel: Existe um software do excel, que eu acredito que vocês conheçam, e dentro do excel existe uma linguagem chamada VBA, que é uma linguagem de programação, e com essa linguagem de programação nós conseguimos deixar o excel bem mais dinâmico, assim, e bem mais fácil de se utilizar. A gente consegue criar, realmente, sistemas dentro do excel, plataformas que facilitam o cadastro do banco de dados, ou então uma alteração desse banco de dados e deixa isso muito mais automático. Então, o que a gente ofereceu é basicamente uma ferramenta em excel que automatiza todo esse processo.  João: De acordo com Vitória e João Gabriel, após a entrega do software, a equipe do posto de saúde conseguiu criar ou atualizar um cadastro em poucos minutos. Essa digitalização e automatização fez com eles conseguissem acompanhar os cadastros de forma mais acessível, por causa do layout desenvolvido que facilitava a visualização dos dados. Isso deixou os processos mais rápidos e, como consequência, facilitou a própria vacinação. Para conhecer mais do projeto, é só seguir a EPR lá no instagram através do @eprconsultoria. Rebecca: Todos esses exemplos de extensão são fenomenais, pois mostram a importância da Universidade Pública. Mas, João, vou fazer um questionamento: será que essa possibilidade de ingressar na universidade e viver tudo isso é para todos mesmo? Nós vimos veicular recentemente o comentário do atual Ministro da Educação, Milton Ribeiro, que a universidade deveria ser para poucos. Lamentável, visto que a nossa Constituição prevê a garantia de educação como um direito de todos. Pensando nisso, de garantir o acesso ao ensino superior, os cursinhos populares ligados às universidades fazem um trabalho sensacional. Para falar mais sobre eles, entrevistamos a Pró-reitora de Extensão, Cultura e Assuntos Comunitários, Maria Santana Milhomem, responsável pelo Programa de Acesso Democrático à Universidade, ou PADU, da Universidade Federal do Tocantins. Maria Santana: O objetivo desse programa é estabelecer a igualdade de acesso e oportunidade de egresso de escolas públicas, indígenas, quilombolas, minimizando as consequências históricas de exclusão social e educacional deste segmento da sociedade atuando de forma política, né? O PADU, que é esse programa, o público dele são os egressos de ensino médio, né? Da rede pública básica de ensino em condições de vulnerabilidade, né? De preferência vulnerabilidade social, negro, né? Em comunidades tradicionais, tocantinenses que são os quilombolas indígenas, buscando assim alternativas para democratizar o acesso e também a permanência desses segmentos na nossa universidade. Mas o objetivo do Padu ele não é só a entrada na universidade, nós temos também uma um trabalho com esses egressos que não são só estudantes na idade do ensino médio, mas também de pessoas que tão querendo concursos, pessoas que não tem condições financeiras de estar no cursinho, então eles também podem participar sem ter um objetivo de entrar na universidade, né? Então, por isso que a gente também leva pra essa essa lógica da formação, né?  Rebecca: Maria comentou que há muitos muitos relatos de alunos que conseguiram melhorar a posição em concursos devido ao PADU e que isso é muito gratificante para eles, pois o concurso, naquela região, é visto como uma das poucas possibilidades de melhora de qualidade de vida. Então há essas três vertentes: o concurso, a matriz ENEM e o próprio vestibular para entrar na Federal do Tocantins. Ao todo, desde que o cursinho foi criado, em 2015, mais de 3 mil alunos já passaram por lá. E quem ensina esses alunos, são os próprios estudantes de graduação da Universidade, que entram como bolsistas para ministrar as disciplinas. O cursinho está presente em cinco municípios, onde os campi da Universidade se encontram, e cada um desses locais possuem metodologias e logísticas adaptadas para cada realidade. Maria Santana: Então tem uma uma matriz já definida, porém a maneira de ministrar os conteúdos depende de cada coordenação, que faz a estrutura, a articulação metodológica desse trabalho com os estudantes, porque nós temos casos, por exemplo, de cidade que os estudantes trabalham o dia inteiro. Quando eu falo estudante, é do PADU, que trabalha o dia inteiro e a noite ele vai pro PADU, então tem que ter uma outra lógica de trabalho com esses alunos. Tudo é gratuito, a gente não trabalha com cobrança nenhuma, até porque o objetivo do Padu, por ser uma universidade pública, ele é totalmente gratuito, né? Assim como o ensino aqui dentro da instituição.  Rebecca: Eu perguntei à Maria Santana onde são realizadas as aulas, se elas ocorrem dentro do próprio campus, ou se há algum espaço cedido pelo governo. Maria: Geralmente a gente usa espaços disponíveis, então tem lugar que é no campus, na estrutura da universidade, tem lugar que é na estrutura do estado, na escola estadual, tem lugar, por exemplo, Palmas, nós tivemos em dois lugares na região sul e na região norte, então a gente ocupava aí uma escola de ensino estadual e outra escola do município, né? E aí os estudantes se inscrevem, a gente bota carro de som na comunidade, coloca na página, coloca na TV, geralmente tem muita entrevista na TV nossa aqui, local, eles chamam para dar entrevista, por que é gratuito, né? E não tem vaga para tanta gente, entendeu? Para as pessoas, porque o pessoal tem muito interesse e por ser estudantes da UFT, que são bolsistas, né? Então os estudantes ficam muito à vontade para participar, porque sabem que os meninos são bons. São meninos selecionados mesmo com um currículo bom, um histórico bacana, né? Então, a gente geralmente trabalha com alunos da graduação que tem um bom histórico, que tem boas notas. Rebecca: Apesar da grande procura da comunidade, segundo a pró-reitora, alguns alunos acabam desistindo durante o semestre, por morarem distantes ou outros motivos. Para contornar essa situação, o PADU oferece muitos incentivos. Maria Santana: Geralmente tem simulado, a gente dá brinde aqui pela Proex, para ver se motiva o pessoal a não faltar “ó, se você não faltar essa semana, na próxima semana vai ter isso, isso e isso né?” Então tem gincanas para deixar o pessoal com mais motivação. Então tem mulheres com crianças, que levam crianças para dentro da sala, né? Então tem tudo isso.  Rebecca: Ainda falando sobre obstáculos, Maria contou que há um outro desafio: alcançar os estudantes das tribos indígenas e quilombolas. Em 2015, no mesmo ano que surgiu o PADU, a Universidade criou o PADIC: Programa de Acesso Democrático de Indígenas e Quilombolas. Ele veio com a mesma proposta do PADU, mas com duas diferenças: o público e o local. Neste caso, as aulas eram ministradas nas próprias comunidades. E por conta disso, precisou ser paralisado, já que carecia de recursos financeiros, para transporte, alimentação, entre outras coisas. Maria Santana: De certa maneira o PADIC ele não tem funcionado hoje, por conta, especificamente, para indígenas e quilombolas, por conta do difícil acesso e falta de recurso financeiro mesmo, porque é muito mais recurso do que o próprio PADU, porque dentro do PADIC, que o objetivo é a formação e o acesso das cidades que estão lá nas comunidades deles, tanto a indígena quanto quilombola, eles ingressarem na minha universidade. Então lá nós teríamos que ter a questão da alimentação, né? Os professores deveriam estar indo para lá pra poder fazer a formação. Então, o recurso financeiro, ele tende a ser maior. Então a gente não tá fazendo esse projeto, o PADIC, por conta disso, mas no PADU nós temos vários estudantes que são de ensino médio, que são de comunidades tradicionais e que participam e por isso eles entram na universidade também a partir do PADU. Então o PADIC está paralisado por falta de dinheiro. Rebecca: As aulas normalmente acontecem de abril a novembro. Contudo, por conta da pandemia, que começou em março de 2020, todo o cronograma e a metodologia foram alterados. No ano passado, a Universidade fez parceria com a Secretaria de Educação do Estado para poder passar o conteúdo a distância. Além das lives, eles apostaram bastante nas rádios, já que muitas pessoas não têm acesso à internet. Além disso, imprimiram material impresso e levaram até os estudantes em situação de vulnerabilidade. Neste ano de 2021, além da pandemia, também houve o atraso das verbas do Governo Federal. Maria Santana: Esse ano foi bem atípico, nós tivemos o problema da pandemia, claro, né? Que foi um dos problemas, mas também teve um problema no orçamento do Governo Federal. O orçamento foi aprovado no mês de maio, em junho. Então, com o orçamento aprovado em junho não teve condição da gente fazer a seleção dos estudantes para serem bolsistas. Os alunos que foram pagos em bolsas, por exemplo, no mês de abril foram com restos a pagar que a gente tinha, entendeu? Então com o recurso desse ano agora, só foi possível a partir de agosto. Então as bolsas, todas elas, PIBIC, estão começando agora mesmo, julho para frente, entendeu? Então esse ano o orçamento da união teve esse problema de aprovação, né?  Rebecca: Por conta desse atraso, as inscrições para o cursinho abrirão agora, em setembro. E quem tiver interessado, deve ficar de olho no site da Universidade, através do link uft.edu.br/proex, ou no Instagram, pelo @proex_uft. Todos esses endereços você pode encontrar na descrição do episódio, lá no site do Oxigênio. João: Depois de falar sobre tantas experiências interessantes, acho que conseguimos dar uma ideia sobre a relevância da extensão universitária. Ela fortalece os vínculos da universidade com a sociedade e proporciona ganhos para os estudantes, em termos de aprendizado. Rebecca: É verdade, João. Essas ações propiciam uma grande troca de experiências, com resultados positivos para todos os participantes. São uma forma de engajar estudantes, docentes, funcionários e sociedade em geral em ações muitas vezes inter e transdisciplinares, e que reforçam a articulação entre os diferentes saberes, acadêmico, popular e empresarial. Enfim, as possibilidades são muito amplas. João: E assim terminamos esse episódio do Oxigênio, que foi apresentado por mim, João Bortolazzo e pela Rebecca Crepaldi. A revisão do roteiro foi feita pela Simone Pallone, do Labjor/Unicamp. Os trabalhos técnicos são do Gustavo Campos, também do Labjor e do Octávio Augusto, da rádio Unicamp.  Rebecca: As trilhas usadas no episódio são de YouTube Audio Library. João: Você também pode nos acompanhar nas redes sociais. Estamos no Facebook, (facebook.com/oxigenionoticias – tudo junto e sem acento), no Instagram e no Twitter, basta procurar por “Oxigênio Podcast”. Rebecca: E você pode deixar a sua opinião sobre este programa comentando na plataforma de streaming que utiliza. Até o próximo episódio!  
29 minutes | Jul 8, 2021
#132 – Os mitos da caverna
Estruturas que despertam o interesse das pessoas há milhares de anos, as cavernas ainda hoje são importantes destinos turísticos, mesmo que não para todos os gostos. Nesse episódio, falamos um pouco sobre essas estruturas, como elas se formam e também sobre os cuidados necessários para a conservação e preservação desses espaços. Falamos também da conservação de outras formações geológicas e turísticas, como picos e morros, que são destinos explorados pelo Geoturismo além das cavernas. Nesse sentido, uma nova iniciativa vem ganhando força, os chamados Geoparques.  Para explorar todos esses assuntos, conversamos com a Thais Medeiros, geógrafa, e com o Thomaz Rocha e Silva, biólogo, que fazem parte grupos dedicados ao estudo das cavernas em suas diversas dimensões. E também com a Marina Ciccolin, geóloga, que é voluntária no projeto Geopark Corumbataí.  Vem com a gente escutar esse papo e bom episódio! Thomaz: Que a gente tem uma riqueza de formações geológicas que precisam ser preservadas, isso é indiscutível. Mayra: A gente escuta muito sobre biodiversidade e a importância de conhecer e preservar as inúmeras espécies de seres vivos, animais, plantas   e até micro-organismos que existem no Brasil e no mundo.  Frederico: É verdade, mas quase não se fala sobre as rochas que formam nosso planeta e as diversas estruturas que elas podem formar. A esses diferentes tipos de rocha, com suas diferentes formas e composições, damos o nome de Geodiversidade. Marina: A sociedade em si se preocupa muito com a preservação ambiental, mas quando a gente fala preservação ambiental, a gente pensa em árvores, a gente pensa em plantas, pensa em bichos em fauna, flora. A gente nunca pensa no que tem sustentando isso, sabe? A gente nunca pensa no que tem abaixo disso tudo. Então esse termo de geodiversidade, ele surge da emergência da gente ter que falar sobre isso, sabe? Ter que falar sobre a preservação do patrimônio geológico, porque se esse patrimônio geológico não está lá, se as rochas não tão lá, se a gente destrói a geomorfologia natural, a biodiversidade não vai se sustentar. Então a biodiversidade depende da geodiversidade, elas andam MUito juntas, se a gente altera a geodiversidade, se a gente vai em algum lugar e cava um buraco, faz uma mineração, a biodiversidade que vai que vai nascer lá depois não vai ser a mesma, não vai ser natural, né? Então são coisas que andam muito entrelaçadas e a geodiversidade não é muito abordada, né? As pessoas não conhecem muito sobre isso. Mayra: Eu sou a Mayra Trinca Frederico: E eu sou Frederico Ramponi, no episódio de hoje, vamos falar sobre algumas dessas formações, como e porque elas podem ser estudadas e algumas estratégias que surgiram para preservá-las. [VINHETA OXIGÊNIO]  Mayra: As cavernas são ambientes com um certo ar de mistério, talvez pela falta de luz, pela presença de animais estranhos e meio assustadores como morcegos e aranhas   ou ainda pela dificuldade de acesso nesses locais. Por isso, não surpreende que essas estruturas despertem a curiosidade das pessoas, o que leva muitas a se dedicarem a conhecer esses espaços.  Frederico: Mas, o que é exatamente uma caverna? As definições de cavernas podem variar bastante, mas, de maneira geral, são cavidades naturais no solo com tamanho suficiente para que uma pessoa adulta consiga entrar. Há quem considere que cavidades menores também podem ser cavernas, mas pra nossa discussão vamos assumir essa definição.   Mayra: O ambiente das cavernas é completamente diferente de qualquer outro ambiente não-cavernícola. O primeiro e principal motivo para isso é a ausência de luz, o que impede o desenvolvimento de plantas dentro da caverna. Assim, as interações entre os seres vivos que habitam esse local serão próprias dele. Normalmente, toda energia que sustenta a vida dentro da caverna, vem de fora dela. Um segundo fator é a formação rochosa em si, a caverna mesmo, que sofre processos de formação e evolução geológicas próprios. Frederico: Uma pessoa pode entrar em uma caverna por esporte, turismo ou pra fazer pesquisas. Seja qual for o objetivo, todas essas atividades se encaixam numa grande área chamada Espeleologia. No Brasil, os principais responsáveis por essas atividades são os espeleogrupos. Thais: Resumidamente, os espeleogrupos são associações voltadas ao conhecimento dos vários aspectos associados às cavernas e também do reconhecimento dos valores ambiental e cultural para a sociedade brasileira. São iniciativas não governamentais, criadas de modo a permitir o posicionamento contrário a atos e ações prejudiciais ao patrimônio cultural e ambiental associado às cavernas. Então de uma maneira geral, todos os espeleogrupos, eles vão se dedicar a preservação e conservação desses patrimônios espeleológicos espalhados pelo Brasil.” Frederico: Essa é a Thais Medeiros, geógrafa, mestranda pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o INPE, e atual presidente do Espeleogrupo de Rio Claro, o EGRIC.  Mayra: Os espeleogrupos podem se dedicar à espeleologia de várias formas, sendo responsáveis pela descoberta de novas cavernas, levantamento de dados sobre cavernas já conhecidas e cursos de formação, por exemplo. Nos últimos anos, o EGRIC tem se dedicado à prospecção e ao mapeamento de cavernas na região da Serra do Itaqueri, que fica na região central do Estado de São Paulo e do PETAR, Parque Estadual Turístico do Alto do Ribeira, no Sul do Estado.  Frederico: Além do EGRIC, existem vários outros espeleogrupos no Brasil, como o grupo Bambuí, de Belo Horizonte. O Thomaz Rocha e Silva faz parte deste grupo, além de ser professor de Bioquímica e Farmacologia no Hospital Albert Einstein e pesquisador na área de bioprospecção de fármacos. Thomaz: A espeleologia ela tem suas subdivisões, então a espeleologia ela se inicia com o que a gente chama de prospecção, que é através de indícios sejam eles é indicações verbais, sejam eles estudos de mapas, né, enfim, estudos da região que levam a indícios de que numa determinada região existam cavernas. Então a gente vai até aquela região, é, caminha no local sempre com georreferenciamento sempre plotando trilhas, faz um registro daquela região e se a gente encontrar a entrada de alguma cavidade a gente registra e deixa marcado. Thomaz: “Meu grande interesse em cavernas é que elas oferecem um ambiente no qual existem biologicamente muitas singularidades. Claro que é em termos geológicos também são singularidades mas na minha linha de interesse eu me interesso pelas singularidades bioquímicas que uma caverna oferece” Mayra: Como você deve estar percebendo, a espeleologia é uma área muito diversa e que abre um grande leque de possibilidades de estudos. Não é simples compreender todos os aspectos que envolvem essas estruturas e como elas se formaram em um clima e ambiente milhares ou até milhões de anos atrás. Como reforça a Thaís. Thaís: A gente precisa dos estudos geológicos, por exemplo pra entender e analisar as variações paleoclimáticas e paleoambientais que existem nesses ambientes. Os estudos geográficos e geomorfológicos que eles vão permitir investigar como a caverna se forma e como ela se integra ao relevo e à paisagem. Os estudos biológicos pra gente entender qual que é a fauna e a flora que compõem esse ambiente subterrâneo. Os estudos arqueológicos e paleontológicos pra entender um pouco da ocupação humana dentro desses ambientes. Frederico: Uma parte importante dos estudos espeleológicos é a pesquisa sobre a formação geológica das cavernas, já que a rocha que a forma e o processo que gerou essa estrutura vão influenciar nas suas características. Cada tipo de rocha é formada por diferentes minerais, diferentes elementos químicos. Então ,o tipo de rocha vai determinar a interação entre elas e o meio . Os processos de formação de caverna mais comuns são os que envolvem rochas carbonáticas e rochas areníticas.  Mayra: As rochas carbonáticas e areníticas são rochas sedimentares, formadas pela deposição de partículas e sedimentos, que vão se acumulando ao longo de milhões de anos. A maioria dos carbonatos é formada pelos esqueletos de algas microscópicas com carapaças de carbonato de cálcio. Já as areníticas são formadas pelo acúmulo de pequenos cristais de quartzo, que nada mais são do que areia, nas bacias sedimentares.  Frederico: Segundo o Anuário Estatístico do Patrimônio Espeleológico Brasileiro de 2019, produzido pelo  Centro Nacional de Conservação das Cavidades, o CECAV,- existem mais de 20.000 cavernas registradas no Brasil. Destas, 54% são cavernas de rocha carbonática, como as do PETAR. E 17% são siliciclásticas, como as cavernas de arenito da Serra do Itaqueri. A Thais explicou pra gente como acontece a formação das cavernas nesses dois tipos de rocha.  Thaís: As rochas carbonáticas, elas são rochas muito solúveis, muito muito solúveis. As cavernas foram formadas justamente por conta da dissolução química que as rochas passaram durante o período de milhões e milhões de anos, é um processo muito muito lento, né, então a água juntamente com os ácidos que formam essas rochas são os elementos indispensáveis pra formação das cavernas carbonáticas. Mayra: A dissolução da rocha, que a Thaís falou, acontece quando a água da chuva interage com o gás carbônico, formando o ácido carbônico, e quando ela penetra no solo, interagindo com os compostos da matéria orgânica em decomposição, formando os chamados ácidos húmicos.  Frederico: Quando esses ácidos entram  em contato com a rocha, são capazes de dissolver e carregar alguns dos minerais que as compõem, como o calcário. Esse processo é responsável tanto pela formação da caverna em si, quanto pela formação dos espeleotemas, como as estalactites e as estalagmites , aquelas estruturas cônicas que vemos no teto ou no chão das cavernas.  Mayra: Já as cavernas encontradas em rochas do tipo arenito tem um processo de formação diferente. É o que explica a Thais… Thaís: As cavernas areníticas elas são bem mais resistentes, né, então a água ela não vai ser o processo direto de formação, né, o desgaste, dissolução química pela água nessas rochas não vai ser o processo direto, então o que vai acontecer é a remoção mecânica desses fragmentos de rocha cavados pela ação dos rios, ventos e animais, mas isso é um processo muito muito lento, em milhões e milhões de anos. Por isso que, se a gente for comparar, as cavernas areníticas, elas são bem menores, porque é um processo que demanda muito mais tempo, essa remoção mecânica, por não ter diretamente esse processo de dissolução química.” Frederico: Quando entramos numa caverna, dificilmente temos noção do tempo e de todos os processos necessários pra sua formação. Às vezes não somos capazes nem de reconhecer seu tamanho real. Algumas cavernas são relativamente pequenas e simples, um grande buraco no meio de uma serra rochosa. Mas muitas delas possuem túneis e, condutos, como a Thais explicou, que vão se aprofundando no interior da rocha. Por isso, sempre que uma nova caverna é encontrada, é importante fazer o reconhecimento desses caminhos. Thaís: Até que o mapeamento e registro de uma caverna sejam feitos, a gente não tem como saber se ela existe ou não, né. Então, o mapa de uma caverna, ele é muito importante, é um documento essencial pra base de muitas pesquisas e até mesmo para fazer a proteção espeleológica dentro das legislações ambientais, né. De acordo com os mapas, a gente pode ter informação sobre a localização dos artefatos paleontológicos e arqueológicos, a gente pode entender por onde os condutos passam, onde se cruzam, se esses condutos eles se cruzam com outras cavernas. E com a realização da topografia das cavidades, né, fazer o croqui, a gente vai conseguir analisar se a gente tem viabilidade de construções e visitação turística, né, e como que essa visitação turística, ela afeta as cavidades. Mayra: Aqui, a Thais tocou num ponto muito importante pra gente. O que precisa ser feito para que uma caverna passe a ser uma atração turística? —- Mayra: Nós estávamos falando sobre as diversas formas de se estudar   e tentar conhecer melhor as cavernas. Mas não são apenas cientistas que se interessam por esse tema, muitas pessoas buscam as cavernas   e outras formações rochosas, picos, serras, cachoeiras, como destinos turísticos. É o que conhecemos como Geoturismo.  Frederico: Mas estabelecer o turismo em uma área natural não é uma tarefa simples. No caso das cavernas, como o Thomaz e a Thais nos explicaram, a implementação do turismo passa por diversas etapas, como a prospecção, o mapeamento e a avaliação da capacidade da caverna de sustentar a visitação. É a partir do mapeamento, por exemplo, que se decide por onde as pessoas devem caminhar na caverna, tentando minimizar os impactos e preservando espeleotemas ou outras formações relevantes do ponto de vista geológico,  histórico ou biológico, como artefatos arqueológicos, pinturas rupestres e fósseis.  Mayra: Sem o preparo adequado, o turismo pode trazer GRANDES impactos a qualquer ambiente natural e as cavernas não são exceção. Sabendo disso, o Thomaz e o grupo Bambuí tem entre as suas atividades, um curso para formação de guias, ajudando na organização dos roteiros turísticos. Thomaz: A gente fazer esse treinamento com os monitores dizendo: “Olha o caminhamento é por aqui, não pode deixar subir lá, não pode deixar pôr a mão aqui, pode incentivar eles a tomar um banho de rio aqui”. Entende? Fazendo as permissões e restrições, isso sem dúvida contribui muito. Frederico: O Thomaz falou muito sobre a importância de preparar a área e também as pessoas responsáveis por ela, porque todos esses passos são importantes para a preservação da área, permitindo que as próximas gerações também tenham acesso a essas oportunidades. É preciso manter o local conservado pra que  o turismo daquela região continue existindo.  Marina: O turismo ele pode ajudar sim na conservação, mas ele tem que ser feito com muita cautela e muito estudo prévio, o que as pessoas normalmente não gostam, né? Porque quando o pessoal contrata a gente para fazer algum serviço turístico, eles querem pra já, pra ontem. Porque eles querem usufruir da área, e muitas vezes para usufruir da área, a gente precisa fazer um estudo. Então a área precisa ficar fechada às vezes, a gente precisa estudar para ver se ela vai aguentar essa visitação turística, a atividade turística. Então se o turismo ele for feito dessa maneira desenfreada, sem estudo, mesmo que seja  na melhor das intenções, sabe? Ele pode sim e com certeza vai prejudicar muito a conservação do patrimônio, seja ele natural ou histórico, cultural, enfim.  Mayra: Essa é a Marina Ciccolin, que você já tinha escutado um pouquinho lá no começo do episódio. A Marina é geóloga, também pela UNESP de Rio Claro, faz mestrado com educação ambiental   e é voluntária no Projeto Geopark Corumbataí, que nós já vamos te apresentar logo mais.  Marina: Agora se o turismo, se a gente faz um estudo e a gente vê quantas pessoas podem entrar lá, acompanhadas de quem, com EPI, com equipamento de proteção, como é o caso das cavernas, né? Você não pode visitar uma caverna sozinho, você tem que estar acompanhado de um grupo, com EPI, com capacete, lanterna. Você não pode chegar e simplesmente entrar numa caverna inabitada, porque é uma área de estudo, né? A gente precisa preservar, precisa conservar essas áreas. Então o turismo se ele não é estudado, ele com certeza vai prejudicar a área. Só que também, assim em contrapartida a isso, a solução, para esses problemas, nunca vai ser proibir o turismo de existir. Porque o turismo vai existir de qualquer maneira, mesmo que a prefeitura não queira, não faça campanha, o turismo vai existir.  Frederico: Esses cuidados são importantes para diminuir os impactos que o fluxo de pessoas pode trazer para esse ecossistema. Medir esses impactos e propor medidas de reduzi-los é parte do que chamamos de plano de manejo. Mayra: O plano de manejo é um documento elaborado em parceria por pesquisadores   e o poder público, e que determina quais atividades podem ou não ser desenvolvidas em determinada região. Esse plano deve ser baseado nos estudos da região e também na legislação vigente e é um documento muito importante para regulamentar o turismo. Frederico: Por exemplo, em novembro de 2008 foi lançado o decreto número 6.640, que determina quais elementos devem ser considerados no momento de classificar a relevância de uma caverna, além de diretrizes para empreendimentos que podem causar algum tipo de impacto nesse ambiente. Thomaz: Antes do decreto de 2008 isso era feito de maneira relativamente subjetiva, os grupos informavam, havia instrumentos para se determinar se uma gruta deveria ser ou não preservada e aí era geralmente associada à presença de um animal troglóbio raríssimo ou de formações espeleológicas raríssimas também. Mayra: Esse animal troglóbio que o Thomaz citou é um animal que vive apenas em ambientes de caverna   e que, por isso, apresenta um conjunto de modificações em seu corpo, como forma de se adaptar a esse local tão extremo. Exemplos comuns dessas adaptações são a perda de coloração da pele e a perda da visão, já que não há luz. Tipo algumas salamandras que ficam brancas e cegas quando vivem em cavernas. Thomaz: Mas não havia uma determinação legal para que ocorresse, né. Na verdade o que ocorria dentro da lei antigamente é que todas as cavernas eram protegidas e ponto final. Só que hoje, com o decreto, houve uma instrumentalização das legislações estaduais que criaram alguns critérios, teve uma legislação federal, o decreto é federal, mas permitiu algumas instrumentalizações de legislação em nível estadual e com isso critérios foram criados para se determinar se uma caverna ela é de baixa, média ou alta relevância ou altíssima relevância. Essas relevâncias máximas, né, são cavernas que não podem ser a de forma alguma suprimidas ou impactadas. E aí cabe a uma decisão de um conselho, que vai fazer um plano de manejo. Então, por exemplo, no estado a gente tem o conselho do patrimônio espeleológico, né. Enfim, cada estado vai ter a sua instância para se determinar se aquela caverna realmente pode ou não ser aberta ao turismo. —- Frederico: O Geoturismo pode ser realizado em vários lugares e de diversas formas, como qualquer outro tipo de turismo. Às vezes está associado a locais isolados e imponentes, como grandes picos e montanhas, ou como no Grand Canyon nos Estados Unidos. Mas tem uma iniciativa relativamente recente no mundo, que busca outras formas de se fazer e pensar o geoturismo. São os Geoparques. Marina: Pra gente definir o que é um geoparque, eu acho mais fácil a gente falar o que não é um geoparque. Então um geoparque não é uma unidade de conservação, geoparque não é uma área de preservação ambiental. E o geoparque não é um parque, por incrível que pareça. Então esse conceito de geoparque começou nos anos 90 na Europa, e é um conceito que ele foi desenvolvido pela UNESCO, que é um modelo de desenvolvimento regional sustentável. Então não é assim algo palpável, você não vai pagar um ingresso para ir no geoparque. Ele é um modelo de desenvolvimento regional, ele é uma região e nessa região a gente vai utilizar principalmente do geoturismo como uma ferramenta de aproximação da comunidade local, dos turistas, com os elementos da geodiversidade. Mayra: Talvez você nunca tenha ouvido falar de um geoparque, o que não seria de se estranhar. Esse é, como a Marina nos explicou, um conceito muito mais comum na Europa e na China, mas que ainda está em desenvolvimento aqui no Brasil. Temos apenas um geoparque nacional   reconhecido pela UNESCO, que é o Geopark Araripe, localizado na Bacia Sedimentar do Araripe, no Ceará. No mundo, são 147 (cento e quarenta e sete) geoparques distribuídos por 41 países. Marina: Por que tem tanto geoparque na Europa? Tanto geoparque na China? E aqui no Brasil só tem um? Será que é porque no Brasil tem menos patrimônio geológico, menos patrimônio natural, do que na Europa e na China? Eu acho que é o contrário, né? O Brasil tem muito mais patrimônio, muito mais potencial para desenvolver geoparque. Só que aí, o problema passa a ser político, porque é muito difícil para a gente da América Latina  conseguir se adequar aos padrões da UNESCO para ter tudo o que precisa pra ser um geoparque global.   Mayra: Por não ser uma área de preservação, mas um modelo de desenvolvimento, a implementação de um Geoparque passa por um processo bastante complexo até ser reconhecido. A primeira etapa, que hoje está o Goepark Corumbataí, é a elaboração do projeto em si, que vai contar com a colaboração de cientistas e da população que mora na região.  Frederico: Só depois de ter esse projeto muito bem estruturado, é que eles podem mandar a proposta pra UNESCO, que vai avaliar e dizer se o Geopark merece ou não o selo de geoparque global. Que é basicamente entrar para uma lista de referência organizada pela instituição.  Marina: A comunidade acadêmica, ela percebe uma região que tem potencialidade geológica e turística também, propõe um geoparque e trabalha junto com a comunidade local para desenvolver esse geoparque. Então, por exemplo, no Geopark Corumbataí a proposta surgiu de uma iniciativa da Unesp com a Unicamp, o campus de Limeira o FCA, o câmpus de Rio Claro da Unesp, o IGCE e também  o PCJ, né, o comitê de bacias hidrográficas. Então a gente se reuniu e falou “vamos fazer um projeto”? “Vamos”,  Mayra: Esse grupo organizou visitas às comunidades locais, explicando todo o projeto e convidando as pessoas a participarem junto. A Marina contou que fizeram umas feiras geoculturais, onde as pessoas podiam vender artesanatos e outras coisas que tivessem alguma ligação com a região do Geopark, como uma forma de divulgação. Marina: Por exemplo, tem as conchas fósseis da Formação Corumbataí, né, então tem muita gente que fez pão em formato de concha para vender, bonequinho de mesossauro, assim, histórias infantis com o patrimônio geológico, sabe? Isso é ocupação da comunidade, é a comunidade perceber a importância do patrimônio que eles têm que, eles vivem, e usar isso de maneira educacional e também financeira. né, porque o geoparque, é bonito falar isso, mas também é uma alternativa econômica, né, para a comunidade. O que acontece muito na região, normalmente os geoparques, eles se desenvolvem em regiões não muito comerciais, não, são regiões que normalmente que sofrem com êxodo, porque as pessoas vão embora da cidade em busca de oportunidades melhores. E o geoparque ele traz essa possibilidade de você continuar na sua cidade e desenvolver algo com com esse patrimônio, entendeu? É um sentimento de pertencimento mesmo. Frederico: Esse sentimento de pertencimento é realmente muito importante porque os geoparques, como a Marina nos falou, não pretendem apenas preservar o patrimônio natural, as rochas ou registros geológicos que existem naquela região, mas também os registros históricos e humanos. A gente tem falado bastante aqui de patrimônio, talvez seja bom fazer uma pausa antes de terminarmos pra Marina nos explicar melhor o que é isso: Marina: São elementos que necessitam ser preservados, porque eles contam a nossa história como humanidade, como comunidade, como seres viventes no planeta Terra. Então esses patrimônios eles podem ser patrimônios naturais, quando a gente fala no caso da biodiversidade e da geodiversidade. Então, um fóssil, um afloramento e até mesmo uma árvore centenária, que tem uma história, pode ser um patrimônio natural. Aí tem patrimônio cultural também, patrimônio histórico, patrimônio imaterial, quando a gente fala de pessoas, tem pessoas que são muito importantes para a região e elas são consideradas meio que tombadas assim, pela UNESCO até, como patrimônio. Tem contadores de história, nossa é é muito bonito, sempre fico muito emocionada quando eu falo disso, eu acho muito bonito. Mayra: É a presença das pessoas, que moram na região, ou que vão só para conhecer e visitar alguma atração turística que torna aquela região importante, que transforma uma estrutura rochosa em um destino turístico. É através das pessoas e do conhecimento que elas adquirem que o lugar ganha importância e pode, a partir daí, ser valorizado e preservado.  Marina: As pessoas conhecem o que elas têm, sabe? Mas elas não sabem o que é, então elas conhecem aquela pedra engraçada que elas veem jogada no chão, mas elas não sabiam que era uma concha fóssil de 250 milhões de anos, e agora elas sabem. Então agora quando elas veem essas pedras diferentes jogadas pelo chão, elas têm um outro olhar, sabe? Então essas pedras que normalmente ficam tudo jogada no terreno dos outros, agora o pessoal já pega faz um trabalho meio que de museu, assim, sabe? Ou até mesmo constrói museus para isso, para guardar essas peças, muita ponta de lança, tem muita ponta de lança, na região do geoparque, feita de sílex, que acho que o pessoal também muitas vezes não conhece. São muitos sítios arqueológicos, e o pessoal conhecendo isso eles passam a preservar porque eles sentem esse pertencimento pela região, sabe? Frederico: A Thaís resume bem a ideia de como é importante essa relação entre a academia, de quem faz a pesquisa, e as pessoas que vivem nessas regiões.  Thaís: Então a gente precisa entender, fazer ciência, fazer a pesquisa nessas cavernas, gerar resultado, gerar produto, gerar conhecimento e depois não parar por aí, divulgar esse conhecimento pras escolas, pras comunidades da região, né, fazer com que elas entendam porque é importante preservar esses ambientes de uma maneira consciente, é que a gente vai fazer com que a gente tenha conservação e a divulgação desses ambientes de forma correta, segundo as legislações espeleológicas e ambientais que a gente precisa seguir. Mayra:  Esse episódio foi apresentado por mim, Mayra Trinca e por Frederico Ramponi. A revisão do roteiro foi feita pela Ana Augusta Xavier e pela coordenadora do Oxigênio, a Simone Pallone, do Labjor Unicamp. Os trabalhos técnicos são do Gustavo Campos e do Octávio Augusto, da rádio Unicamp.  A trilha sonora é do Freesound, da Biblioteca de Áudio do YouTube e uma das trilhas é do aluno do curso de Música da Unicamp Lucas Carrasco, criada especialmente para a série Escuta Clima, aqui do Oxigênio. Frederico: Você também pode nos acompanhar nas redes sociais. Estamos no Facebook, (facebook.com/oxigenionoticias – tudo junto e sem acento), no Instagram e no Twitter, basta procurar por “Oxigênio Podcast”. Mayra: Você pode deixar a sua opinião sobre este programa comentando na plataforma de streaming que utiliza. Até o próximo episódio!
33 minutes | Jun 25, 2021
#131 – Ainda é necessário usar animais para testar cosméticos?
O episódio de hoje trata de uma assunto polêmico: é ético fazer testes em animais para garantir a segurança dos produtos cosméticos utilizados pelos humanos? A animação Save Ralph, produzida pela organização Humane Society International, trouxe à tona essa questão e o Oxigênio resolveu investigar! Para entender melhor, a jornalista Rebecca Crepaldi e a bióloga Fernanda Capuvilla entrevistaram dois convidados: Victor Infante, Doutor em Ciências Farmacêuticas com ênfase em medicamentos e cosméticos pela USP, e Ana Carolina Figueira, Doutora em Ciências na área de Física Aplicada Biomolecular, também pela USP, e, atualmente, pesquisadora e coordenadora do Laboratório de Espectroscopia e Calorimetria do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM). A discussão, então, gira em torno da história da testagem em animais, do avanço da Ciência e da existência de testes alternativos para muitos experimentos! _________________________ Rebecca: Quem usa as redes sociais, certamente ouviu falar ou assistiu nas últimas semanas, a animação “Save Ralph” que foi produzida pela Humane Society International. Trata-se de uma animação em stop-motion que conta a vida de um coelhinho de testes chamado Ralph. Fernanda: “Save Ralph” é um curta escrito e dirigido por Spencer Susser, com a voz do ator Rodrigo Santoro para sua versão em português. Na animação, Ralph relata o seu dia de trabalho, mas o que de fato chama a atenção são as condições nas quais o coelhinho se apresenta no vídeo, com a pele, orelha e olhos machucados. Isso sensibiliza os telespectadores em relação ao sofrimento dos animais, que passam a se questionar sobre a necessidade destas cobaias. Rebecca: Mas, será que ainda precisamos utilizar os animais para fazer esses testes de segurança para o uso dos produtos cosméticos? Fernanda: Eu sou Fernanda Capuvilla Rebecca: E eu sou Rebecca Crepaldi Fernanda: E no episódio de hoje vamos falar sobre testes em animais para produtos cosméticos e quais seriam as suas alternativas. Rebecca: E para entender melhor sobre esse assunto, trouxemos dois convidados: No primeiro bloco, vamos ouvir Victor Infante, graduado em Farmácia e Bioquímica pela Universidade de São Paulo e Doutor em Ciências Farmacêuticas com ênfase em medicamentos e cosméticos, pela USP. Fernanda: Já no segundo bloco, o bate-papo será com Ana Carolina Figueira, bióloga formada pela UFSCar e Doutora em Ciências na área de Física Aplicada Biomolecular pela USP. Atualmente, é pesquisadora e coordenadora do Laboratório de Espectroscopia e Calorimetria do Laboratório Nacional de Biociências, na sigla LNBio, do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais, o CNPEM. [VINHETA OXIGÊNIO] Fernanda: Você sabia que, historicamente, os testes em animais são realizados há muito tempo? Pois é, desde 300 a.C. já existem registros de pesquisadores gregos que realizavam experimentos em animais vivos. Rebecca: Mas, Fernanda, 300 a.C. tá longe né? Vamos trazer mais pra perto? Em 9 de dezembro de 1946, houve um acontecimento conhecido como Tribunal de Nuremberg. Neste Tribunal, vinte e três pessoas foram julgadas pelos brutais experimentos realizados em seres humanos durante a segunda guerra mundial. Como consequência, em 19 de agosto de 1947, foi criado um documento que ficou conhecido como Código de Nuremberg. Este documento tornou-se um marco na história da humanidade, pois pela primeira vez, estabeleceu-se uma recomendação internacional sobre os aspectos éticos envolvidos na pesquisa com seres humanos. Ao todo, o código era composto por 10 princípios, sendo que o terceiro deles exigia que os testes fossem feitos em um modelo animal antes de passar para um voluntário humano. Fernanda: Apesar de parecer crueldade, para a época foi um ganho positivo, já que estava poupando o sofrimento dos humanos. Contudo, a Ciência foi evoluindo e viu-se a necessidade de criar conselhos e códigos voltados para testes em animais. Rebecca: Isso mesmo! Atualmente, quase 40 países, incluindo a Índia, Taiwan, Coreia do Sul, Guatemala, Nova Zelândia e Austrália proibiram a testagem em animais. A campanha conduzida pela Humane Society International é responsável por grande parte desse avanço ao redor do mundo e, agora, está encabeçando ações legislativas similares em outros países como: Chile, México, Estados Unidos, Canadá, África do Sul e Sudeste Asiático. Chegando este ano também ao Brasil. Fernanda: A criação da Comissão de ética no Uso de Animais na Fiocruz ocorreu em 2005, passando a ser uma das primeiras instituições no Brasil a ter esse tipo de órgão. Em 2008, o senado brasileiro aprovou por unanimidade a Lei Arouca, criando assim o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal, o Concea, que regulamenta o uso de animais em experimentos científicos. Já em 2012, a Rede Nacional de Métodos Alternativos ao Uso de Animais, a RENAMA, foi criada e a Fiocruz criou o seu Centro Brasileiro de Validação de Métodos Alternativos. Rebecca: E toda essa legislação é direcionada aos testes em animais para fármacos e também cosméticos. Mas, nesse episódio, falaremos sobre cosméticos. E o que são eles?  Eles vão desde enxaguante bucal a produtos de maquiagem, hidratantes, shampoo, condicionador e sabonete. Todos eles precisam ser testados porque estão em contato com a pele, não é mesmo. Victor, Explica para a gente! ———— Victor: Vamos fazer da pessoa que consome até a cadeia de produção, né? Então, a pessoa que consome, ela vai tá exposta a alguma coisa, quando você vai aplicar um produto, você tá exposta a esse produto ele não vai ter necessariamente, a gente espera que um cosmético não tenha essa circulação co-sistêmica, que não penetre esse tanto na pele e tudo mais, ele pode levar a problemas, como, por exemplo, se você tem um cosmético que atua, vamos supor, nos olhos, então, você tá passando um lápis de olho, alguma coisa, você tá expondo uma mucosa, essa mucosa, ela é altamente permeável, além de ser altamente permeável ela é altamente sensível. Então, a gente precisa saber o que que é sensível nessa mucosa, tá? Isso aqui é importante. Por que que é importante? Porque daí, se a gente tá falando sobre testes, a gente tá falando também sobre  a nossa responsabilidade enquanto consumidor, a gente tá consumindo alguma coisa e a gente precisa que isso seja seguro. Você quer que o seu produto cosmético seja seguro. Você tem a segurança de passar e que ele seja seguro, certo? Então, se alguma coisa vai ser comercializada nesse sentido, ela precisa passar por testes que garantam que seja seguro. Bom, aí você vai passar pro produto finalizado. Então, é o produto que você compra. Esse produto que você compra, a gente já não faz mais testes em cosméticos Mas, a grande questão é quando a gente volta um pouco antes e vai para as matérias primas e vão compor esse cosmético, para gente garantir que ele vai ser seguro, a gente precisa primeiro garantir que essas matérias primas sejam seguras, né? Que aí quando você vai formular alguma coisa, se você é um farmacêutico ou o químico que vai fazer essa formulação, você vai, primeiro, olhar, se todas as matérias primas, elas são seguras, quais concentrações elas são seguras, em quais partes do corpo você pode aplicar com segurança, para daí você fazer a formulação, né? É um pouco diferente de você criar uma formulação sem ter essa informação prioritária. Então, você tem essa informação, primeiro, dada nesse ponto. Esse ponto de cada matéria-prima separado. E aí, aqui é ponto, é onde fica mais problemático. Onde, muitas vezes, a gente precisa ou não fazer e a discussão onde vai tá sobre essa questão dos testes em animais Rebecca: No inicio do podcast, nós contextualizamos o ouvinte acerca do Código de Nuremberg, onde foi estipulada a necessidade de testar em um modelo anima. Mas gostaríamos de entender um pouco melhor, é ético testar em animais? Victor: Antes de você testar alguma coisa no ser humano, você precisa testar em um modelo animal. Naquela época, né? Se a gente pensa nos anos 40, você não tem a nossa modernidade de hoje em dia, então, e o envolvimento e o desenvolvimento tão profundo da ciência nesse sentido de conseguir desenvolver novos testes, né? Então, assim, do ponto de vista ético, se a gente olhar nessa perspectiva, é. Agora, a outra questão que a gente tem que levar em consideração é, onde estamos, o que conseguimos desenvolver até então. Porque daí se a gente conseguiu desenvolver e sair daquela perspectiva, então, a gente tem que rever quais são os pontos e qual que é a necessidade de utilização, tá? Então, isso é um ponto muito importante. Para você trabalhar com o animal, não é simplesmente pegar um animal e fazer um teste, existe um comitê de ética. Existe todo um grupo de pessoas que vai avaliar se isso É ético ou não. Nesse ponto de vista, se esse teste, ele envolve um sofrimento, ele envolve o uso de animal e a gente já pode reduzir, na verdade nem utilizar, pode substituir esse animal por outros métodos, esse teste já não vai ser mais utilizado do ponto de vista ético, ele já não faz muito sentido. Então, a ética é uma coisa que ela vai evoluir junto com a nossa perspectiva humana e também com a nossa perspectiva enquanto ciência. Enquanto que a ciência, ela pode dar pra gente subsídios para que a gente consiga chegar em respostas de acordo com o que a gente procura, com aquela metodologia. Rebecca: Vamos falar agora sobre o vídeo do coelhinho. Qual é o teste que aparece na animação? Como ele funciona? Ele ainda é utilizado atualmente? Victor:  Olha, é o teste de Draize, ele é de 1944. Esse teste, como vocês podem ver, ele é bem antigo, né? E ele vai ver uma irritação ocular do coelhinho. Então, você coloca o produto no olho e você vê a irritação, o grau de irritação. Então, se a gente pensar numa perspectiva histórica, esse teste é de 1944, antes de Nuremberg, antes da gente passar por essa discussão bem humana sobre o que que são as os testes em animais. Então, ele tem uma perspectiva histórica meio complicada, digamos assim. Bom, aí a gente vai evoluindo, né? E a gente vai evoluindo e a partir um tempo, depois dos anos 60, principalmente, começam-se a repensar a utilização de animais em alguns modelos de estúdio, especialmente esses modelos que eles acabam envolvendo muita, muito sofrimento animal e começa a rever todo um pensamento que, bom, então, a gente pode repensar. Esse teste, praticamente, não é mais utilizado no Brasil, tá? Você não vai conseguir encontrar, eu desconheço, eu posso tá falando alguma coisa errada aqui, mas eu desconheço a utilização desse teste hoje em dia, porque a gente pode usar métodos alternativos para substituir esse teste e que são métodos mais fáceis de serem feitos, além de serem mais humanos. Então, eu não vou expor o coelho àquela condição, não vou expor o animal àquela condição. E os testes, que são substituídos, então, a gente consegue evitar. É porque assim, é complicado você pensar que é tão fácil trabalhar com animal e não é. Rebecca: Então há todo um movimento pra tentar se reduzir ao máximo a utilização de animais em testes pra cosméticos, certo? E da onde surgiu esse debate? Victor:  Eu vou já contextualizar para gente os três Rs que eu acho que daí eu consigo falar um pouco melhor sobre isso, né? Que seria o Reduction, Refinement and Replacement. Então o que seriam os três? Uma ideia que surgiu nos final dos anos 50, junto de dois pesquisadores, que era o seguinte, bom, se a gente está pensando sobre a utilização de pesquisa em um ser humano, por que que a gente não pensa sobre também a pesquisa com animais, né? Por que que a gente não reduz, não substitui ou refina, são os três Rs, né? No caso no Brasil, vai ter o Replacement que vira o S, substituição E aí eles começam essa discussão dentro da ciência e também dentro da própria questão quando vai para um setor de comércio, né? Quando vai para uma indústria, né? No setor industrial. E aí é o seguinte, quando você tem esses três erres (RRR), essa ideia é a seguinte: que você consiga reduzir ao máximo, melhorando cada vez mais a tecnologia que você usa, que você consiga refinar isso ou que você consiga substituir totalmente o uso. E quando eles propõem isso, uma das questões, é, justamente, vertebrado, os animais vertebrados, ou a cefalópodes, que são lula, polvo, enfim, e que você não usa esses animais, mas, por exemplo, você pode usar mosca, você pode larva, você pode usar alguma coisa nesse sentido para ver algum teste de toxicidade e tudo mais. E aí é o seguinte, você tem esses três Rs, eles são a base, o pilar, para gente pensar em tudo, que a gente vai falar hoje em dia. Mesmo dentro dos fármacos, a gente consegue utilizar esses três Rs Rebecca: Já existem alternativas, né? Estudos para substituir os testes em animais na área de cosméticos? Victor: Olha, existe, existem muitas alternativas novas. É o seguinte, hoje a gente já consegue chegar em perspectivas de não utilizar animal também, como, por exemplo, a criação de pele 3D, que ainda é muito cara, mas que dependendo do modelo que você usa, você também utiliza algum tipo de insumo que vem da indústria alimentícia, vai fazer o meio de cultura, enfim. Então, você consegue cada vez mais reduzir, só que ao mesmo tempo a gente precisa cada vez mais pensar no investimento, na ciência, pensando a longo prazo, porque a gente chegou num ponto muito melhor que nos anos 80, nos anos 90, os anos 2000, especialmente nos anos 2000 Então, a gente tem que ter cada vez mais investimento em pesquisa para que essas metodologias, elas sejam cada vez mais bem refinadas, para que a gente consiga cada vez mais ir para um ponto de substituição completa, ou, pelo menos, o máximo que a gente conseguir. É um ponto que eu acho que é onde os 3Rs vão te levar, mas a gente ainda precisa caminhar meio que junto. Basicamente, né? Os cosméticos, eles já estão andando nessa perspectiva. Eu acho importante finalizar isso aqui, falando, bom, as pessoas sempre falam pra mim, ah, meus cosméticos não é tão importante, num sei o que, num sei o que. Aí, eu sempre pergunto, Você tá usando? Você tá comprando? Você tá consumindo? Então, por que que você tá falando isso? Então, de alguma forma, a pessoa, ela coloca isso pra baixo, ela acha que não é importante, mas porque ela já tem um produto seguro. Então, ela pode falar que não tem muito problema, sabe? Sendo que a gente sabe que os testes mesmo, o teste de Draize, veio de um problema que veio, acho que foi um erro que tiveram com o produto pra olho, que deixou várias pessoas cegas. Aí você fez o teste depois disso. SEGUNDO BLOCO Fernanda: Dando continuidade, falaremos agora dos testes alternativos. Para isso, convidamos a pesquisadora do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), Ana Carolina. O LNBio está associado à Rede Nacional de Métodos Alternativos, a Renama, criada em 2012. Além dele, outros dois laboratórios fazem parte da Rede, sendo eles o Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia, Inmetro, e a Fundação Oswaldo Cruz, Fiocruz. O Inmetro, por sua vez, cuida da parte de regulamentação de métodos. Já a Fiocruz é responsável pela implementação dos métodos, enquanto o LNBio é voltado para inovação e criação de novos métodos alternativos. Rebecca: O LNBio trabalha com culturas 3D de células e tem buscado desenvolver, em parceria com a indústria farmacêutica, modelos de pele com o objetivo de criar alternativas para a testagem de cosméticos em animais, trabalhando também com o uso de microchips. A Ana Carolina explica um pouquinho melhor sobre esses métodos alternativos para a gente! Carol: Esse sistema de chip, o que que a gente faz? A gente desenvolve, então, desenvolve culturas 3D, esferoides ou organóides, né? Em plaquinhas de petri. Então, a gente tem esses mini órgãos. São culturas tridimensionais que funcionam como mini-órgãos, eles são mini-órgãos, exatamente? Não, mas eles têm papel de mini-órgãos, né? E aí, no chip, a gente tem um projeto agora, inclusive, com uma industria de cosmético, o que a gente faz? A gente tem pocinhos, buraquinhos. Então, você imagina uma plaquinha, aonde eu tenha três buraquinhos nessa plaquinha. Num buraquinho eu coloco um fígado, o fígado é o primeiro sinal de toxicidade, a maior parte dos estudos de toxicidade sistêmica, né? Bom, passei um produto na minha pele, ele foi absorvido e caiu na minha corrente sanguínea, vai pro meu fígado. E se causar algum problema, o primeiro sinal vai aparecer ali no meu fígado. Então, quando a gente faz testes de toxicidade sistêmica, a gente faz no fígado. Eu posso colocar um fígado num buraquinho, no outro buraquinho eu coloco uma pele, por exemplo, né? E eu posso, então, eu tenho esses dois buraquinhos, eles são conectados por sistemas microfluídicos, que a gente chama, né? Na verdade, são canais, e a gente liga isso numa boa. E a gente tem meio de cultura ali. Então, se eu passar um produto em cima da minha pele, que tá num buraquinho ali, né? Esse produto é absorvido pela pele e vai cair no meio de cultura que simula minha circulação, né? Isso vai chegar até o meu fígado. Depois, eu meço a toxicidade nesse meu fígado e vejo se aquele produto foi tóxico ou não. Bom, isso é uma tecnologia fantástica, na verdade, porque você pode até usar para toxicologia de fármacos. Então, vamos colocar. Então, eu tenho mais um buraquinho ali, eu vou colocar fígado, intestino e coração. Eu tô desenvolvendo um remédio para coração, certo? Eu tomo remédio por via oral. Então, eu vou olhar no meu intestino se esse remédio passou por circulação sanguínea. Depois, eu vou olhar no meu fígado, porque como tudo é mantido uma circulação e você tem uma bomba simulando a circulação sanguínea ali com movimentos, né? De pulsação, para simular mesmo que o produto fique circulante. Então, você absorveu o intestino, chegou. O fígado não foi tóxico ou foi tóxico e chegou no coração, causou um efeito, certo? Então, com isso, você começa a simular sistemas humanos. E por que isso? Você vai conseguir, realmente, provar por A mais B? Bom, por enquanto, você não prova totalmente toda a eficácia, você não tem o ser humano na plaquinha, mas você reduz em muito animais de experimentação. Outro dia eu tava lendo uma reportagem, que o uso de chips para um um tipo de experimento que era feito em um teste que eu não vou lembrar agora, exatamente, qual era, mas assim, reduziu de cento e oitenta animais para seis. Certo? Então, nós estamos falando aí de uma redução muito drástica no uso de animais, né? Então, o uso desses chips é uma tecnologia que a gente tá trabalhando e a gente tem que tentar desenvolver cada vez mais ensaios, principalmente em ensaios toxicológicos pra gente tentar, realmente, validar essa metodologia e que isso seja utilizado. É barato? Ainda não, mas pode vir a ser, quando todo mundo começa a utilizar, isso se torna barato, né? Então é uma tecnologia muito, muito boa, está no mercado aí, acho que em torno de dez, quinze anos. E tem sido muito utilizado, principalmente para testes toxicológicos, testes de permeação. E na indústria cosmética, a gente está tentando desenvolver uma metodologia agora pra gente validar vários desfechos para, não só toxicológicos, mas vários outros desfechos tanto para produtos tanto de absorção oral, hoje em dia a gente tem os cosméticos que a gente toma, né? Os nutracêuticos e coisas do tipo, quanto para absorção  cutânea Fernanda: E agora que já conhecemos um pouco mais a tecnologia dos microchips, vamos ouvir sobre o uso de softwares, que também estão auxiliando para a redução do uso de animais em testes. Carol: É algo mais ou menos assim, você tem bancos de dados, de moléculas, no qual você já consegue saber quais foram… A primeira coisa, hoje em dia, para se tentar reduzir o uso de animais, é tentar mostrar que, bom, se aquele experimento já foi feito, certo? Com a molécula X, você vai tentar pegar de base o que tá recortado na literatura, tá? E aí, hoje em dia, existem ferramentas computacionais – não só bancos de dados – dizendo ‘olha, o experimento foi feito, isso é tóxico, isso não é tóxico’, mas ferramentas que simulam computacionalmente, olhando a parte química da molécula, se aquela molécula pode causar algum tipo de toxicidade. Se aquela molécula, pelo esqueleto químico dela, vou colocar assim, pelo formato dessa molécula, pela composição dessa mólecula, o quanto ela poderia, o quanto ela é parecida com outras moléculas que são tóxicas. Vamos falar assim, bem, bem por cima né? E aí, com isso, bom, essa molécula tem uma uma porcentagem de chance de ser tóxica, porque ela tem esse grupo químico, porque ela tem esse outro grupo químico, porque ela tem esse esqueleto químico, ela tem esse formato, ela tem essa estrutura. Então, existem já softwares com isso. Isso que se faz, a gente faz uma triagem inicial. Então, você consegue, por exemplo, ah, eu tenho que testar cinquenta mil moléculas, certo? Você já reduz isso pra dez mil?  Aí você faz testes em células e você reduz isso pra quinhentas. Aí você faz outros testes em culturas 3Ds, em outras células, você reduzir isso pra cinco, uma. E aí, essa uma você vai e leva pra todos os testes que já são alternativos e, no final, o que trouxe algum tipo de instabilidade, você pega e coloca no animal. Então, assim, tá sendo uma cadeia que tá afunilando cada vez mais. Antigamente, você tinha… num era um funil, era um uma uma torre, né? Então, vinha todos os testes eram feitos em todas as instâncias. Hoje em dia, não, hoje em dia você tem um funil. Então, você vai tirando animais que você iria usar, que você não usa, porque você tem outros testes ali, que você pode usar. Fernanda: Bom, mas essa mudança nos protocolos não ocorre da noite pro dia, não é mesmo? Carol: O Problema de você falar, vamos parar totalmente de usar animais em experimentação, é que ainda precisa se validar esses métodos, né? Os métodos novos que surgem, eles precisam ser validados, eles precisam ser uniformes. Então, o uso de células, o uso de culturas 3D, o uso dessas metodologias alternativas, elas podem variar muito de laboratório pro laboratório. E aí, se você varia muito, você não consegue uma padronização e você não consegue falar, não, olha, isso aqui funciona, eu testei meu produto, meu produto não é tóxico, né? Porque a grande preocupação, principalmente, com produtos cosméticos, é com relação a toxicidade. A segurança do produto, né? Na década de sessenta, por volta de sessenta, pouquinho antes, a gente teve dois grandes causos com relação a segurança de produtos e um deles era um produto cosmético, era um rímel que foi desenvolvido, esse rímel acabou deixando mulheres cegas. Então, assim, a gente precisa tomar muito cuidado com a segurança dos produtos e essa é a grande preocupação da Anvisa para regulamentar qualquer produto novo. Então, se você não tem os métodos muito bem validados, muito bem padronizados e que eles realmente funcionem e registrem o que a gente realmente, com relação a seguranças de um produto, é difícil você ainda cortar totalmente o uso de animais A gente tem outro problema também relacionado à extinção total do uso de animais, é que, por exemplo, existem alguns testes que já têm as metodologias alternativas, um deles é o teste de irritação ocular, que seria alternativo ao uso de coelhos em experimentação. O problema é que o teste validado usa um kit de epitélio, e esse kit ele tem viabilidade de sete dias e aqui no Brasil, agora, existe uma indústria, uma empresa,que está produzindo, mas a viabilidade desse produto é sete dias. Então, a gente ainda tem problemas de logística. Antigamente, isso era somente importado. Então, era inviável você importar uma pele que está sendo produzida, uma epiderme que é produzida, e isso chegar aqui ser liberado e chegar em menos de sete dias para que você consiga fazer o teste. Isso traz um, além de encarecer, né? Isso traz um problema de logística grande e, geralmente, quando se tentava comprar esse material, a gente tinha, a gente recebia esse material inviável. Então, assim, era um prejuízo muito grande. Hoje em dia a gente já tem uma alternativas que ainda tá se formando, mas existe uma luz no fim do túnel, né? Fernanda: Afinal, utilizar animais para testes é mais barato que o uso de testes alternativos? Carol: A maior parte das empresas grandes, elas tão tentando fugir dos testes animais. É caro você manter animal, não é barato, é trabalhoso, porque você tem que ter lá uma biotério, você tem que manter o animal, não é barato, você tem que cuidar desse animal, depois você vai usar esses animais em alguma em alguma experimentação, aí você tem que sacrificar esses animais. Então, assim, não é uma coisa muito simples de ser feita. É muito mais fácil você ter um laboratório de cultura de células e você usar métodos alternativos, né? O problema é ainda, nós estamos caminhando pra isso. Só pra lembrar que a gente não faz testes em animais, em coelhos aqui no LNBio, tá? Fernanda: E agora retomando aí as questões levantadas pelo curta metragem “Save Ralph” houve uma pressão junto ao governo federal para a regularização das leis brasileiras, não é mesmo? Carol: Eu não diria uma pressão ao governo nacional, mas sim uma pressão mundial. Porque, realmente, por exemplo, a China ainda exige que seja feito testes em animais. Aqui no país, a gente tem tido diretrizes cada vez melhores, mais fortes, para que se evite o uso de animais. Só pra ter uma ideia, nos últimos anos, depois da criação do Renama, que foi criado em dois mil e onze… em dois mil e dezessete, foram aprovadas vinte e quatro metodologias alternativas de testes em animais, só aqui no Brasil. A questão que vocês falaram de alguns estados, ainda proíbem o uso de animais para experimentação, principalmente pra cosmético, né? Os estados proíbem, São Paulo, Rio de Janeiro acabou de proibir, Distrito Federal, são sete estados no país que proíbem. O que acontece é que a gente é um país federativo e a legislação federal e os órgãos federais ainda aceitam. Os movimentos estão sendo feito, né? Pra se banir o uso de testes em animais, mas na legislação federal isso é aceito. Então, o estado proibir, não, é só mais um movimento de apoio, entendeu? Mas não restringe a aplicação dos experimentos em animais. No caso do cosmético, o efeito nem é tão exigido. Ah, eu desenvolvi um creme que acaba com as rugas em três dias. Isso é marketing, o efeito nem é tão exigido pras indústrias regulamentadoras, né? O que é necessário? É provar que você não vai causar nenhum mal, porque como é um produto dito por alguns, fútil, né? É um produto simplesmente de bem-estar, é um produto simplesmente de cuidado e não um produto terapêutico, ele não pode, de forma alguma, trazer mal. Então, você precisa provar, por A mais B mais C, mais D que, não, de forma alguma, esse produto vai causar problema, você pode ter, ah, ‘talvez algum componente alérgicos, algum componente da formulação’, mas aí é um número restrito de pessoas, né? Fernanda: E agora a gente vai ouvir algumas considerações em relação ao avanço das técnicas alternativas Então, assim, enquanto não se tiver metodologias muito sólidas e muito bem difundidas e muito bem treinadas, para se trocar os testes em animais por alternativas em placas de petri vão ser necessários esses testes, né? Bom, um um exemplo básico é o da córnea de Coelho, hoje em dia a maior parte dos testes já não é feito mais em animais, né? Alguns testes de permeação, que eram feitos, por exemplo, com pele de orelha de porco. Mas não, as empresas não usavam assim, ah, eu vou criar o corpo pra tirar a orelha dele e vou matar o porco, depois, né? Que isso é o maior problema? Você não pode usar o animal e depois deixar ele lá, você causa um dano no animal, você vai deixar ele sofrendo depois. Então, o protocolo é: você usou o animal, você mata o animal depois, né? Então, assim, para esses estudos de pele de corpo, era feito associações com matadouros, que usam o porco da indústria alimentícia, né? E aí, a pele da orelha do porco era vendida no dia do abate para que fossem feitos esses experimentos de perfusão, de permeabilidade cutânea, né? Hoje em dia já temos alternativas a esse tipo de teste em orelha de porco e já não são mais tão aplicados assim. Então, as coisas têm mudado. É um cenário muito bom, principalmente pra parte cosmética. Rebecca: A ciência está avançando! Os testes alternativos existem e estão cada vez mais ganhando espaço. Fernanda: Mas é preciso muito investimento em pesquisa, elaboração de novas leis e apoio à ciência para que esse cenário possa mudar definitivamente. Rebecca: O episódio de hoje está chegando ao fim e esperamos que tenham gostado de conhecer um pouco mais sobre os testes alternativos para segurança de cosméticos. Fernanda: Nós agradecemos a presença dos nossos convidados, Ana Carolina Figueira e Victor Infante, e a você, ouvinte, que nos acompanhou até aqui! Rebecca: Esse episódio foi pensado, escrito e apresentado por mim, Rebecca Crepaldi, e pela Fernanda Capuvilla. Fernanda: A edição é do Gustavo Campos e as artes de divulgação são da Rafaela Moreira, ambos bolsistas SAE  no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo. Rebecca: O projeto é supervisionado pela Professora Simone Pallone e tem parceria com a Rádio Unicamp. Fernanda: Você também pode nos acompanhar nas redes sociais. Estamos no Facebook, (facebook.com/oxigenionoticias – tudo junto e sem acento), no Instagram (@radiooxigenio) e no Twitter (@oxigenio_news). Rebecca: Obrigada e até a próxima!   Curta metragem (inglês): https://www.youtube.com/watch?v=G393z8s8nFY Curta metragem (português): https://www.youtube.com/watch?v=AjdMtLF0Z6w
28 minutes | May 27, 2021
#130 – Casa de Orates, ep. 6 – A desreforma psiquiátrica
Neste sexto e último episódio do Casa de Orates vamos falar sobre o desmonte das políticas públicas de saúde mental e as perdas de direitos conquistados a duras penas ao longo das últimas décadas, como o acesso a um tratamento humanizado para pessoas com transtornos mentais.  Em meio ao caos que estamos vivendo com a pandemia de Covid-19, as mudanças estão acontecendo, aos poucos, sem que a sociedade se dê conta. Mas, o que podemos fazer para impedir o que está sendo chamado de Nova Política Nacional de Saúde Mental?  Para ajudar a entender essa nova política e os prejuízos que ela pode trazer para a saúde da população brasileira, conversamos com o psiquiatra Marcelo Brañas, que atua no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, e também no hospital Israelita Albert Einstein; a professora da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Rosana Onocko; a psicóloga Maria Carolina da Silveira Moesch, coordenadora do curso de psicologia da Universidade Comunitária da Região de Chapecó, a Unochapecó e Fernando Freitas, pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Fiocruz.  Nesse episódio, contamos ainda com o depoimento da Ana Carolina, paciente diagnosticada com depressão e que,  integrou um projeto social para ajudar outras pessoas com transtornos mentais ——————————————————– ROTEIRO RAFAEL REVADAM: No dia 06 de abril foram comemorados os 20 anos da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Como dissemos em episódios anteriores, essa reforma foi responsável em mudar a maneira como a  saúde mental era tratada no país, até então centralizada em internações compulsórias e medicalização. ROBERTA BUENO: Mas as conquistas que garantem um tratamento humanizado estão ameaçadas. Nos últimos anos, pensamentos conservadores estão ganhando força, principalmente no governo atual. RAFAEL REVADAM: Ameaças de cortes de verbas no SUS, mudanças na gestão de políticas públicas para a saúde mental ou liberação de compra de testes psicológicos a qualquer pessoa. Essas são algumas das ações que ocorreram só nos últimos meses. ROBERTA BUENO: Isso é o que associações e conselhos relacionados ao tema estão chamando de Nova Política Nacional de Saúde Mental, uma série de ações que intensificam as internações compulsórias, a medicalização e, principalmente, direcionam os pacientes com problemas de saúde mental a profissionais não-capacitados. Eu sou Roberta Bueno. RAFAEL REVADAM: E eu sou Rafael Revadam, e no programa de hoje nós vamos falar de um movimento silencioso que busca alterar as políticas públicas de saúde mental. Enquanto estamos vivendo os reflexos da pandemia, alguns representantes legais estão aproveitando a visibilidade da covid-19 para implementar uma nova reforma psiquiátrica. MARCELO BRAÑAS: Eu tenho um viés pessoal pra responder essa pergunta porque felizmente eu tenho a sorte de trabalhar em um hospital que é referência no SUS, que é o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, e também num hospital particular de referência que é o Hospital Israelita Albert Einstein, então, eu tenho pouco contato né, com outros serviços, por exemplo, postos de saúde, CAPS, e… outras coisas, só que eu tenho sim acesso a esse cenário ahnn através da população que acaba chegando no hospital das clínicas e conta pra gente como foi o atendimento em outros serviços, relatos de colegas que trabalham nesse serviços, e.. enfim, e o que que a gente observa, a gente observa que a maioria das diretrizes dos órgãos brasileiros por exemplo de saúde, como é o ministério da saúde, pelo menos até um passado recente, na maioria sim, estão de acordo com a Organização Mundial da Saúde, com outras instituições internacionais importantes de referência na medicina. Em importantes centros acadêmicos no Brasil, principalmente em hospitais-escola, né, a medicina praticada é a medicina baseada em evidência, nas evidências científicas atuais né. Agora, uma limitação, por exemplo, é a disponibilidade no SUS né, de tratamentos baseados em evidência. Tem uma gama gigantesca de medicações psiquiátricas que não tão disponíveis no SUS. Tem também várias psicoterapias especializadas que não tão disponíveis em quantidade suficiente no SUS. E outro ponto é que uma coisa é o que tá no livro né, uma coisa é o que tá nas diretrizes, uma coisa que se fala que tá nas universidades de ponta, outra coisa é o que é feita na prática e a gente sim, tanto no Brasil quanto em outros países, a gente ainda vê muitos profissionais tomando condutas e fazendo tratamentos baseado na sua opinião pessoal né, não baseados no que a ciência mostra que funciona, ou que não funciona né. Então, isso é um problema, porque é um gasto de recurso numa coisa que pode não ser a mais adequada, dado o conhecimento médico atual.  RAFAEL REVADAM: Esse é o psiquiatra Marcelo Brañas. A gente conversou com ele para entender o panorama da saúde mental no país. Parte da nossa conversa está no primeiro episódio dessa série, chamado Por que estamos ficando doentes? ROBERTA BUENO: Hoje, o que é visto no dia a dia dos hospitais é uma realidade diferente da recomendada pela Organização Mundial da Saúde, a OMS. As mudanças nas políticas de saúde mental estão surgindo aos poucos, por meio de uma série de comunicados, projetos de lei e decisões judiciais. Na prática, uma burocracia direcionando verbas para outros tratamentos, dentro ou fora do SUS. Muitos sem embasamento científico. RAFAEL REVADAM: A situação mais grave ocorreu em dezembro, quando o Ministério da Saúde ameaçou revogar uma série de portarias existentes desde a década de 90 sobre o tratamento de transtornos mentais. Na época, o jornal Folha de S. Paulo teve acesso a uma planilha do Conass, o Conselho Nacional de Secretários da Saúde, com as propostas que o Governo Bolsonaro desejaria colocar em prática. ROBERTA BUENO: Entre as principais ações estão a extinção das equipes que dão suporte para a transferência de moradores de hospitais psiquiátricos a serviços comunitários, o fim do programa De Volta para Casa, responsável pela reinserção social de pacientes com transtornos mentais, e alterações no financiamento do programa Consultório de Rua, que atende pessoas em situação de rua. RAFAEL REVADAM: O projeto também previa mudanças no funcionamento dos Caps, os Centros de Atenção Psicossocial, incluindo a extinção daqueles que são voltados exclusivamente a usuários de drogas e álcool. Também havia uma proposta de afrouxar o controle das internações involuntárias, retirando a obrigatoriedade de comunicar o Ministério Público nesses casos. A professora da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Rosana Onocko, deu mais detalhes dessa situação. ROSANA ONOCKO: Uma semana antes do ano acabar tinha essa ideia de que iriam ser revogadas não sei quantas portarias da saúde mental, e aí teve uma mobilização muito rápida, muito forte das várias associações, enfim, a ABRASME, ABRAPSO, ABRASCO, Ministério Público, e evidentemente toda essa reação tão grande conseguiu, por enquanto, né, é… brecar essa essa revogação de portarias. Mas esse governo tem tido esta atitude em inúmeras instâncias que contam com a participação social. Então, conselhos que eram de 200 pessoas foram reduzidos pra 20, é… representantes que tinham que ser indicados pelos pacientes ou pela comunidade passaram a ser indicados pelo governo. A lógica desse governo é uma lógica autoritária, vertical, que nega a participação, que se acha dono da razão, é… eu acho que cabe a nós, aos movimentos, os grupos que temos interesse em manter essa política pública viva, uma organização que vai ser dentro do grande do estado ampliado, mas não do aparelho do Estado nesse momento né. Então nós temos que continuar a fazer o que a gente faz, que é pesquisar, publicar, mostrar, é, fazer barulho, reclamar, é, fazer passeata, fazer abaixo-assinado, enfim, nós temos que ser o tempo inteiro um um uma máquina de frear barbaridades né.  ROBERTA BUENO: Além da Abrasme, a Associação Brasileira de Saúde Mental, da Abrapso, Associação Brasileira de Psicologia Social e da Abrasco, Associação Brasileira de Saúde Coletiva, citadas pela Rosana, outras entidades também se manifestaram contra o revogaço das políticas de saúde mental. Juntamente com os 24 Conselhos Regionais e o Conselho Federal de Psicologia, essas associações criaram um manifesto, que se espalhou na imprensa e pelas redes sociais. RAFAEL REVADAM: O manifesto diz que, abre aspas: “a reformulação da assistência em saúde mental coloca o hospital psiquiátrico de volta à rede assistencial e entende a ‘doença mental’ como algo individual, descontextualizada das relações políticas e sociais. É uma oposição ao processo histórico da Reforma Psiquiátrica Brasileira, que busca denunciar as atrocidades praticadas por hospitais psiquiátricos, comparados a campos de concentração nazista. Na última inspeção realizada em 2019, foi demonstrado que há quase 20 mil leitos em hospitais psiquiátricos no país, sendo dois desses hospitais os maiores da América Latina. Mais da metade dos hospitais que continuam em funcionamento são da época da ditadura militar, e todos os inspecionados apresentaram violações de direitos humanos.A Associação Brasileira de Psiquiatria, e as demais entidades que defendem esse revogaço, parecem não ter acompanhado a evolução histórica do reconhecimento das pessoas em sofrimento mental como sujeitos de direitos, ao invés de objetos de intervenção médica, fecha aspas. ANA CAROLINA: Oi, meu nome é Carol, tenho 35 anos e vou falar um pouquinho sobre a minha depressão. Eu sempre tive depressão, na verdade, mas eu descobri, fui diagnosticada efetivamente depois de uma tentativa de suicídio alguns anos atrás, há 11 anos atrás, na verdade, quase 12. E nessa tentativa de suicídio foi o ápice da minha depressão, o momento em que eu cheguei mais ao fundo do poço, causado pela minha depressão, por conta de diversos fatores da minha vida. Após essa tentativa de suicídio, eu iniciei um tratamento mais profundamente com o psiquiatra e com o psicólogo, fazia o tratamento, acompanhamento com o psiquiatra, tomando o medicamento antidepressivo e mais um medicamento pra transtorno bipolar por um bom tempo, por alguns anos. E depois, agora, atualmente eu to tomando só o antidepressivo. E fazia também a terapia, uma vez por semana, por um bom tempo. Hoje em dia estão um pouco mais espaçadas as sessões da terapia e é sempre assim, um tratamento contínuo, que não acaba. Há alguns anos atrás, em 2017 ou 2018, eu fui convidada para participar de um projeto em Vinhedo, Valinhos e Campinas, onde o nosso intuito era prevenir a depressão e o suicídio entre jovens e adolescentes. E… eu fiz algumas palestras, eu contei a minha história, eu falei sobre o meu relato, a minha tentativa de suicídio, o meu tratamento, como foi, a necessidade de ter uma rede de apoio, que é muito importante o apoio dos familiares, dos amigos e profissional. E foi uma experiência muito boa pra mim, apesar de ser muito doloroso expor toda a minha história, falar sobre tudo o que eu passei, sobre tudo o que eu senti, e sobre tudo isso pra um público tão jovem, foi muito gratificante também. Hoje, eu sou uma pessoa que tem consciência do meu estado clínico em relação à depressão e que sabe os momentos em que ela pega, mas eu to passando por um momento muito lindo e muito complicado da minha vida, que eu to grávida do meu primeiro filho, e por mais que seja um momento extremamente difícil porque foi fruto de um…, não de um relacionamento estável, de um relacionamento passageiro, digamos assim, é uma coisa que me deixa muito feliz. E, apesar de toda essa felicidade, de eu estar muito feliz com a chegada desse bebê, eu ainda tenho os meus momentos de pavor, de medo, de ansiedade, e isso tudo sem a rede de apoio que eu tenho hoje, que são meus familiares, meus amigos, o tratamento com o psicólogo, sem isso tudo eu não conseguiria enxergar um lado bom dessa situação, dessa nova vida que está chegando na minha vida e, com certeza, eu não conseguiria ver o tanto que eu sou uma pessoa feliz e abençoada. ÂNCORA TV TAROBÁ: O Supremo Tribunal Federal liberou a venda de testes psicológicos ao público em geral. Até então, apenas psicólogos tinham acesso ao material. O Conselho Federal de Psicologia já recorreu da decisão. REPÓRTER TV TAROBÁ: Os testes verificam a condição psicológica das pessoas e atestam, por exemplo, capacidade para obter posse de armas, carteiras de habilitação e também é usado no curso de algum processo judicial. Na semana passada, o STF ampliou para qualquer profissional a possibilidade de comprá-los. Até então, apenas psicólogos com registro profissional tinham acesso ao material, vendido por distribuidoras autorizadas. Na decisão, o ministro Alexandre de Moraes compara os testes a livros didáticos, para ele, tanto um quanto o outro devem ser acessíveis à população em geral. A aplicação dos testes, no entanto, fica restrita aos psicólogos. ROBERTA BUENO: Além do revogaço, essa medida do Supremo Tribunal Federal, o STF, que autorizou a venda de testes psicológicos para qualquer pessoa, também preocupa especialistas. Até março deste ano, a venda estava limitada a psicólogos credenciados nos Conselhos Regionais de Psicologia. RAFAEL REVADAM: Em uma live, a presidente do Conselho Federal de Psicologia, Ana Sandra Fernandes, explicou a importância dessa restrição na comercialização dos testes. Para a entidade, o acesso público a esses testes psicológicos, que normalmente são utilizados em exames para carteiras de habilitação ou para posse de armas, possibilita que pessoas não-capacitadas consigam treinar e serem aprovadas, obtendo registros sem a devida qualificação. ANA SANDRA FERNANDES: Eu gostaria de, rapidamente, fazer um resgate sobre a nossa atuação a respeito dos testes psicológicos. Então, a primeira informação é que o CFP, em conjunto com as entidades da psicologia, também com os conselhos regionais, têm lutado o tempo todo para que o STF não chegasse ao entendimento que resultou na decisão publicada pela Corte. Na nossa avaliação, os testes psicológicos, eles não podem ser equiparados a livros didáticos porque acarreta consequências que colocam sob ameaças a segurança desses testes. Outra questão que eu quero bem rapidamente destacar é que a restrição ao qual se refere a Resolução nº 02/2003, é uma forma de proteger a sociedade, justamente por meio da segurança dos testes e, consequentemente, dos seus resultados. No contexto do trânsito, só para dar um exemplo, onde a letalidade é extremamente alta, não podemos, de modo algum, fragilizar a segurança dos resultados, porque isso significa, na prática, a possibilidade de termos condutores inaptos operando veículos pelas ruas do país. O mesmo acontece na avaliação que atesta, um outro exemplo, a aptidão para posse e manuseio de armas de fogo, precisamos de mecanismos qualificados e seguros para avaliar a aptidão das pessoas que almejam manusear estes artefatos, ou correremos o risco de não enfrentar, de maneira efetiva, o problema da violência e da segurança pública. Eu citei apenas estes dois exemplos, mas nós estamos falando de muitos outros contextos, de processos judiciais, de concursos públicos, organização do trabalho, bom, e tantos outros contextos. ROBERTA BUENO: No dia 20 de abril, o Conselho entrou com uma medida no STF, para revogar essa decisão. Até a finalização desse episódio, esse processo segue em análise. RAFAEL REVADAM: Outra questão foi a nomeação do psiquiatra Rafael Bernardon Ribeiro como o novo coordenador-geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, o que foi repudiado pelo Conselho Federal de Psicologia. Em nota, o Conselho afirmou que Rafael vem participando das políticas de desmonte da saúde pública desde o Governo Temer. Abre aspas: sua trajetória profissional é circunscrita à realidade do hospital psiquiátrico, sem experiências em serviços comunitários, é um ferrenho defensor da eletroconvulsoterapia, e pode ser considerado como um dos responsáveis pela assim chamada Nova Política Nacional de Saúde Mental, fecha aspas. ROBERTA BUENO: E aí veio a pandemia e ainda haverá o pós-pandemia. E nessa avalanche de decisões contra a saúde mental, os especialistas são categóricos: não teremos estruturas para lidar com as consequências dos diagnósticos mentais que estão vindo com a covid. É o que explica a psicóloga Rosana Onocko. ROSANA ONOCKO: A pandemia arrefecendo a gente vai ver nas reações das pessoas que depois, isso que eu tô falando, os lutos demorados, as fichas que caíram, a exaustão do trabalhador da saúde, do serviço indispensável, que só depois que pode parar um pouco que vai poder aparecer então haverá esse esse aumento de demanda sem dúvida, é… e há uma tentativa é… criminosa do governo federal de eliminar a política de saúde mental que tem sido construída ao longo dos últimos 30 anos né. Então assim, o Brasil que já saiu na literatura internacional, tem artigos no Lancet, nas melhores revistas assim, da saúde, internacionais, elogiando o processo de de desmonte dos manicômios e dos asilos para transformá-los numa rede de serviços comunitários articulados né, com atenção primária e com os serviços hospitalares do SUS, é… essa experiência tem sido saudada pela Organização Mundial da Saúde, por inúmeras publicações e constantemente, digamos, nos últimos 4, 5 anos, a gente tem tido ameaças né, de retrocessos importantes, já houve retirada de financiamentos pra alguns desses equipamentos, há um desinvestimento também crônico, praticamente desde 2016 pra frente é… das capacitações, dos treinamentos, porque são serviços que funcionam muito em relação ao trabalho clínico né, então precisa muito de um pessoal muito muito bem é… treinado e muito motivado né, pra pra enfrentar esse tipo de de questão.  RAFAEL REVADAM: Para a psicóloga Maria Carolina da Silveira Moesch, que também coordena o curso de psicologia da Universidade Comunitária da Região de Chapecó, a Unochapecó, a falta de estrutura para lidar com a pandemia pode intensificar práticas equivocadas no tratamento da saúde mental. MARIA CAROLINA MOESCH: Com tudo aquilo que a gente tá vivendo de um congelamento né, de investimentos na saúde, e com uma necessidade muito grande da atenção básica de olhar pro pós-covid, e aí a atenção básica olhar de forma integral, eu não sei se a gente vai dar conta.. E aí entra nesse lugar assim de que, como que a gente vai olhar pra isso né, se a gente não vai medicalizar ainda mais a população como um cuidado paliativo, se a gente vai ter né, a possibilidade de ter um, de que a atenção básica em saúde possa pensar estratégias de acolhimento porque a gente está muito tempo sob a questão estressora né, vamos assim dizer. A gente tá muito tempo dentro do evento estressor e aí agrega-se a isso a uma falta de direção e de comando das ações, causa mais insegurança do que a insegurança na qual a gente já tá. E a gente tem só fatores que vão ampliar ainda mais a necessidade de cuidado em saúde mental, e que me parece que hoje a gente já não tem a estrutura, e o que a gente tinha tem sido alvo de desmonte quando a gente mais precisa. Então acho que a gente tem aí um problema grande de saúde pública pra muito tempo e que o meu receio é que a gente vai lidar com isso, como a gente vem lidando, e é com a medicalização da vida.  ROBERTA BUENO: E para evitar a medicalização, outras medidas são necessárias, como a união entre saúde e cultura. É o que a Rosana Onocko sugere.  ROSANA ONOCKO: Eu tenho pessoalmente insistido muito também na relevância né, que nesse processo todo ter a articulação da saúde com a cultura. Em que sentido eu tô dizendo isso, é que acho que nem todas essas, reações que a gente vai ter precisarão es.. necessariamente de tratamentos clínicos, ou de remédios, ou de intervenções clínicas mais específicas, mas sim precisarão de espaços de elaboração. Então nós vamos ter que poder criar muitos espaços culturais, no sentido não de entretenimento né, não no sentido assim de uma cultura que eu digo da, só da diversão, mas de espaços de elaboração, das pessoas poderem escrever, ler poesia, ver filmes, é, ter rodas de conversa, rodas de samba, enfim, o que seja, que permita que cada um de acordo a sua … ao que lhe agrada mais em termos culturais e a suas, a suas origens, é, possa ter algum espaço do, onde junto com outras pessoas possa elaborar esse período tão tão tenebroso que a gente tá vivendo. Porque o perigo se não fazermos isso é só medicalizar né, você acha que todo mundo vai se curar tomando remédio e a gente sabe que pra esse tipo de transtornos tem que ter muito clara a indicação de uma medicação.   RAFAEL REVADAM: E no meio desse caos de cortes e de tanta coisa a ser feita na luta pela saúde mental, qual é o papel da sociedade? Quem responde essa pergunta é o Fernando Freitas, pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Fiocruz. FERNANDO FREITAS: O processo é complexo, e envolve muitos atores diferentes, né. Vamos, assim dizer, alguns atores principais, atores sociais principais. De um lado, óbvio, são os usuários, com a gente chama, né, ou pacientes. Que sejamos mais organizados, seja pra defender, não voltar à questão asilar né, a luta antimanicomial, que já é uma coisa relativamente forte no país, uma tradição da luta antimanicomial. Mas também contra outras formas violentas. Porque aí vai unificar não só quem já teve em um hospital, mas também a mim, a minha mãe, que não estão em um hospital psiquiátrico, mas são tratados pela psiquiatria, entendeu? E ficam dependentes dela. Ficam dependentes daquele remédio para dormir. Se não tomar aquele remédio, não dorme mais. E daqui a pouco vai ter que tomar mais e mais, e mais remédios. Isso é uma violência. Então, de repente essas pessoas, quer dizer, unificar os atores sociais, aqueles que já tiveram experiência com manicômio, etc, etc, mas também a sociedade em geral, nós. Na verdade, na verdade, uma parte razoável de nós, passamos por isso ou vamos passar por tratamento, por depressão… Outros atores são os profissionais de saúde mental, contra esse retrocesso. Mas eu acho que, sobretudo, a sociedade precisa estar bem informada. A sociedade, como um todo. Eu acho que falta muita informação, muito fake, muita fake news. Resumidamente, unindo os fatores sociais que estão em jogo com uma pauta em comum, como a luta antimanicomial, que é uma pauta forte, mas não ficar restrito a isso. ROBERTA BUENO: Esse foi o último episódio do Casa de Orates. Ele foi apresentado por mim, Roberta Bueno, e pelo Rafael Revadam. Nós também participamos da produção, junto com a Ana Augusta Xavier.  RAFAEL REVADAM: As músicas usadas neste programa são da YouTube Audio Library, e os vídeos dos canais Tarobá Jornalismo e do Conselho Federal de Psicologia. A revisão do roteiro e a coordenação são da professora Simone Pallone, do Labjor/Unicamp, e os trabalhos técnicos são meus e do Octávio Augusto.  ROBERTA BUENO: Você também pode nos acompanhar nas redes sociais. Estamos no Facebook, (facebook.com/oxigenionoticias – tudo junto e sem acento). E no Instagram e no Twitter, basta procurar por “Oxigênio Podcast”. ANA AUGUSTA XAVIER: Oi! Aqui é a Ana Augusta e eu invadi o final do programa pra me despedir e lembrar vocês de deixar a opinião sobre este episódio nas plataformas de streaming ou no site do Oxigênio. E de quebra, eu vou dar um spoiler: o Casa de Orates vai ter uma segunda temporada! Até lá! ——————————————— O vídeo do canal Tarobá Jornalismo pode ser visto na integrada em: https://www.youtube.com/watch?v=Fhty-qEKy_Y&ab_channel=Tarob%C3%A1Jornalismo. A live com a fala da presidente do Conselho Federal de Psicologia, Ana Sandra Fernandes está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HBAI9Y73zJ4&t=726s&ab_channel=ConselhoFederaldePsicologia.  Créditos da imagem: Zhang Kenny (Unsplash/@kennyzhang29) 
23 minutes | May 13, 2021
#129 – Escuta Clima – ep. 6 – Amazônia e Cerrado: a importância dos biomas para o clima
Os ecossistemas dos grandes biomas têm a capacidade de influenciar diretamente o clima mundial. Portanto, quando os seres humanos degradam as matas, caçam os animais, queimam e desmatam grandes áreas nativas, acabam interferindo na ciclicidade natural de elementos que garantem a nossa própria sobrevivência. A Amazônia e o Cerrado são dois ótimos exemplos sobre esse assunto. Cada qual com suas particularidades, suas distintas importâncias ecossistêmicas e econômicas, mas sob a mesma ameaça: a gestão do atual governo.  A série Escuta Clima é produzida pela Camila Ramos e está ligada ao curso de Especialização em Jornalismo Científico do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) e ao Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade (Nudecri) da Unicamp. O projeto tem o objetivo de divulgar as pesquisas e pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia sobre Mudanças Climáticas (INCT-MC) e é apoiado pela bolsa Mídia Ciência da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).  —————————————————————————————————————- Camila Ramos: A boiada passou junto com o Leonardo DiCaprio, que ajudou os povos indígenas a tocar fogo na Amazônia. Já no Pantanal, que é igual a Califórnia, as queimadas são causadas pelas altas temperaturas. Mas, no final, tudo não passa de uma mentira, não é mesmo? Apesar da ironia retratada aqui, essas foram algumas das frases reais e polêmicas ditas pelo Presidente da República, Jair Bolsonaro. Desde 2019, vemos com desespero as manchetes nos portais de notícias sobre as queimadas na Amazônia e em outros biomas brasileiros. E ouvimos o presidente e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, negarem omissão contra o desmatamento e o acobertamento de atividades ilegais que são praticadas na Amazônia, como a extração de madeira, a mineração e plantios ilegais. Durante a Cúpula do Clima de 2021, convocada pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e realizada por videoconferência entre os dias 22 e 23 de abril, ouvimos, assim como todo o mundo, o Bolsonaro dizer que, apesar das limitações orçamentárias do Governo, ele havia determinado o fortalecimento dos órgãos ambientais, duplicando recursos destinados às ações de fiscalização para coibir o desmatamento ilegal. Porém, no dia seguinte, ele sancionou o Orçamento de 2021, com vetos que incluíram o corte de 240 milhões de reais da pasta do Meio Ambiente. Segundo reportagem publicada na CNN Brasil, desse montante, serão 11 milhões a menos no orçamento de fiscalização do Ibama, que é o principal órgão federal do meio ambiente. Infelizmente, ver nossas matas ardendo em chamas já virou rotina e talvez continue sendo.  Então, no episódio de hoje, que é o último da série Escuta Clima, vamos entender a importância, as ameaças e como preservar os maiores biomas do Brasil, que são a Amazônia e o Cerrado. Para isso, vamos ouvir dois especialistas da área: o Paulo Artaxo, que é professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo e membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, o IPCC; e a Mercedes Bustamante, que é professora do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília. Ambos são pesquisadores do INCT sobre Mudanças Climáticas. Eu sou Camila Ramos e você está ouvindo o Escuta Clima. Um podcast para divulgar as pesquisas do INCT sobre Mudanças Climáticas. É vinculado ao Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp, o Labjor, e é uma seção da revista ClimaCom e Rede de Divulgação Científica e Mudanças Climáticas. [Vinheta do podcast Escuta Clima] Camila Ramos: A Amazônia é a maior floresta tropical chuvosa do mundo, abrangendo uma enorme área do território brasileiro e se estendendo até partes de outros nove países da América do Sul. Nela está a maior bacia hidrográfica do mundo e uma vasta e rica biodiversidade. Suas interações ecossistêmicas são extremamente relevantes não só pro Brasil como para todo o planeta, como explica o Paulo Artaxo. Paulo Artaxo: A floresta Amazônica é absolutamente estratégica para o clima global, tanto do ponto de vista da quantidade de carbono armazenado no ecossistema, que corresponde a cerca de 10 anos de toda a queima de combustíveis fósseis, quanto o seu efeito na chuva na América do Sul. Camila Ramos: O que o Artaxo quis dizer é que a Amazônia libera uma quantidade massiva de vapor de água, gerando nuvens de chuva que irrigam o centro-sul do Brasil. Além disso, as florestas em geral são grandes estoques de carbono, já que esse elemento químico fica armazenado nas árvores e nas raízes das plantas. Ou seja, a partir do momento em que o ser humano desmata e queima essas áreas, o carbono é liberado para a atmosfera na forma de gás e se torna um dos causadores do efeito estufa. Já falamos do aquecimento global causado por esses gases no primeiro episódio dessa série de podcast, que você encontra na mesma plataforma que nos ouve agora. Bom, esse aumento da temperatura age, também, contra a floresta que ainda não foi degradada. É uma via de mão dupla. Como explica o Artaxo, novamente:  Paulo Artaxo: O bioma Amazônico está sofrendo significativas perdas por causa do aquecimento global. A temperatura média na Amazônia já subiu 2ºC e é um ecossistema extremamente sensível a qualquer variação na temperatura e na precipitação. Além de pararmos, brasileiros, o desmatamento da floresta Amazônica, é fundamental que haja uma redução na emissão de gases de efeito estufa, porque, se isso não ocorrer, a floresta Amazônica pode não ter condições de sobreviver a um aumento na temperatura de 4ºC a 5ºC ou uma redução da chuva de 30% a 40%. E, portanto, independente do que fizermos do ponto de vista de destruição da floresta, é possível que a floresta não sobreviva ao aquecimento global se mantivermos as emissões grandes que temos atualmente. Camila Ramos: Em outras palavras, o ser humano consegue causar danos duplicados na mesma floresta. E esses danos podem ser irreversíveis, já que o bioma Amazônico é extremamente sensível e não consegue se regenerar rapidamente. Não podemos simplesmente replantar algumas árvores e pensar que todo o problema está resolvido. Não! O processo é muito mais complexo. Como o Artaxo comenta. Paulo Artaxo: O bioma Amazônico é extremamente rico e não é possível, no curto e no médio prazo, recuperar esse bioma com a biodiversidade original que ele tinha depois de ele ser desmatado ou destruído. Portanto, é melhor nós preservarmos esse bioma da melhor maneira possível, porque a riqueza da biodiversidade desse bioma é extraordinária e não pode ser reposta facilmente. Pode demorar centenas de anos para a biodiversidade atingir o mesmo nível de que ela tinha antes de ser destruída. Portanto, a melhor política pública é preservar a floresta Amazônica o máximo possível e ir explorando sua biodiversidade de uma maneira sustentável.  Camila Ramos: É importante salientar que a degradação da floresta Amazônica acontece, majoritariamente, por atividades ilegais, ou seja, por invasões de terras públicas e de terras indígenas, que são protegidas pela Constituição. Bom… Eram protegidas. Nos últimos anos, o governo do presidente Bolsonaro e do Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, vem deixando a boiada passar ao aprovar diversas medidas, reformas institucionais, desestatizações e flexibilizações que permitiram o desmatamento na Amazônia e atividades ilegais em diversos biomas. Com isso, além dos ecossistemas, os povos tradicionais da região são severamente ameaçados e, muitas vezes, mortos por esses invasores interessados na extração de madeira, no garimpo ou na agropecuária. Ameaças essas que, diversas vezes, foram incentivadas por declarações do próprio presidente da República, ou seja, daquele que deveria garantir a sobrevivência da população. Paulo Artaxo: Então, obviamente, é importantíssimo que a sociedade brasileira acorde para as ilegalidades que estão ocorrendo na região Amazônica de tal maneira a fazer com que a lei seja cumprida também na região Amazônica protegendo a floresta, protegendo os povos indígenas e protegendo o patrimônio que pertence a todos os brasileiros. Camila Ramos: Existem diversas formas de explorar economicamente a região de forma sustentável, promovendo, ao mesmo tempo, a conservação do ecossistema. O Fundo Amazônia, um fundo de investimentos gerido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES, é uma forma de financiar iniciativas que têm, justamente, esse objetivo. O Artaxo dá alguns exemplos: Paulo Artaxo: Várias alternativas trabalhadas ao longo das últimas duas ou três décadas, por várias organizações não-governamentais, mostraram que é possível, por exemplo, fazer exploração seletiva de madeira sem destruir a floresta, trabalhar com a questão do extrativismo, explorar, por exemplo, o açaí (que tem um valor econômico muito alto) e assim por diante. São inúmeros exemplos que mostram que o pior caminho para a floresta Amazônica é destruí-la e transformá-la em gás de efeito estufa. Há maneiras muito mais inteligentes e eficientes de explorar a riqueza embutida dentro da floresta Amazônica. Camila Ramos: Foram diversos os projetos implementados desde 2008, com o apoio do Fundo Amazônia. Esses projetos, muitos ainda em andamento, ajudaram, ao longo desses anos, a conservar a floresta e diminuir o desmatamento. Até agora. Porém, nos últimos anos e principalmente no governo atual, estamos presenciando um aumento da degradação ambiental, e a diminuição da ação de diversas políticas públicas, como o Fundo Amazônia. Mas antes de nos aprofundarmos na questão política, precisamos conhecer outro gigante ecossistema brasileiro, que é extremamente importante para nós e está severamente ameaçado. O Cerrado é o segundo maior bioma da América do Sul, abrangendo cerca de nove estados brasileiros e dominando a maior parte da região central do território. E é fundamental pro nosso país. Como explica a Mercedes Bustamante. Mercedes Bustamante: O Cerrado tem uma importância vital para o Brasil. Ele é o grande provedor de recursos hídricos para várias bacias hidrográficas importantes do Brasil, que avançam além da própria extensão geográfica do Cerrado. Adicionalmente, o Cerrado é considerado a savana mais biodiversa do mundo. Então, ele abriga uma enorme riqueza de flora e fauna, muitas dessas espécies são endêmicas e só acontecem aqui. Camila Ramos: Como eu disse, a maior parte do Cerrado está nas regiões centrais do Brasil onde estão, justamente, as maiores áreas de agricultura. E esse é o maior problema, já que muitos agricultores continuam abrindo cada vez mais territórios para as suas atividades e, consequentemente, acabam degradando a biodiversidade nativa que está em seu caminho. Já vimos no episódio anterior que a produção de alimentos não deve ser vista como vilã desde que seja feita de forma sustentável e que os agricultores tenham em mãos informações suficientes sobre como explorar a região sem danificar o bioma. Você pode ouvir o episódio intitulado “A produção de alimentos nos dois lados da porteira” nessa mesma plataforma que nos ouve agora. Mas é inegável que, atualmente, a agropecuária é a maior ameaça do Cerrado e a Mercedes explica o porquê: Mercedes Bustamante: Bom, a fronteira, o movimento da fronteira agropecuária no Cerrado, ela continua sendo um vetor muito importante de alterações em larga escala do bioma com perda expressiva da cobertura vegetal. Essa substituição de uma savana diversa por um sistema de monocultura, seja de pastagem, seja de agricultura de grãos, têm um impacto direto sobre o funcionamento hidrológico do Cerrado, permitindo que menos água retorne para a atmosfera na forma de vapor de água e haja menos recarregamento do conteúdo de água do solo. Então isso tem um impacto muito direto sobre a provisão desses recursos hídricos. Adicionalmente, ela é uma agricultura, em geral, bastante intensiva com uso de recursos como fertilizantes, como agrotóxicos, também representam um problema de contaminação para os sistemas nativos que estão próximos dessas áreas cultivadas. Camila Ramos: O fogo também é uma questão relevante no Cerrado, mas sobre esse assunto é preciso entender que existem duas situações diferentes: o regime de fogo natural e o manejo de fogo antrópico. Toda a vegetação do Cerrado tem uma maior resistência pro fogo, porque, naturalmente, entre a transição das estações secas e chuvosas acontece o período do regime de fogo, que oferece benefícios, por exemplo, quando renova os nutrientes do solo. Então, o problema acontece quando essa periodicidade do regime é alterada pela ação dos seres humanos. E a Mercedes explica essa questão: Mercedes Bustamante: O que nós observamos hoje é um aumento da frequência de queimadas em determinadas áreas do Cerrado motivadas pela ação antrópica, muitas vezes o manejo de áreas de pastagem com o uso do fogo para renovação das pastagens e esse fogo então, ele acaba escapando e invadindo áreas naturais provocando grandes incêndios. Então, a grande diferença da queimada natural e da queimada antrópica se refere exatamente a essa mudança do regime. Então, embora a vegetação, ela tenha adaptações para responder a questão do fogo, tudo isso depende com que frequência e com que intensidade, qual é o intervalo que ocorre para que essa vegetação se recupere. Se a gente sai desse linear, desse regime natural do fogo, a vegetação não tem condições de se recuperar a tempo da próxima queimada e isso leva, então, a um processo de degradação da vegetação com a abertura cada vez maior das áreas, com uma maior entrada de gramíneas, acentuando ainda mais esses efeitos deletérios do fogo. Camila Ramos: Além de tudo isso que a Mercedes falou, o problema se acentua no momento em que o fogo transforma as árvores (que são estoques de carbono) em gases de efeito estufa, da mesma forma que acontece na Amazônia, como já dissemos. Então, entendendo a necessidade de conservação, mas, também, percebendo a importância da região para a economia do Brasil e dos pequenos agricultores é necessário pensar em soluções pro problema e a Mercedes tem algumas. Mercedes Bustamante: É importante a gente lembrar que o Cerrado, ao contrário da Amazônia, onde a maior parte das terras são públicas, a maior parte das terras se encontram nas mãos de proprietários privados. Então, é muito importante que o sistema público tenha uma boa relação com o setor privado, no sentido de indicar que haja o incentivo, a prática sustentáveis para produção com a redução do desmatamento e, ao mesmo tempo, que haja uma fiscalização para que seja coibido o desmatamento ilegal do Cerrado. Ao mesmo tempo, é importante que haja um entendimento, também, de como o fogo pode ser utilizado para manejo da biodiversidade no Cerrado, sem provocar uma série de impactos negativos. Então, uma gestão responsável do fogo, ela também demanda um conhecimento técnico de quais são os impactos ecológicos que um manejo equivocado do fogo pode trazer para o bioma Cerrado. Camila Ramos: Outra alternativa para mitigar os problemas da região se encontra na sabedoria do povo tradicional, afinal, o Cerrado abriga uma valiosa diversidade de comunidades indígenas, quilombolas, geraizeiros, entre outros. Esses povos tradicionais se desenvolveram tendo uma relação mais harmoniosa com as terras que habitam. Eles sabem como explorar a região do Cerrado e manejar o fogo de forma mais sustentável, ao mesmo tempo que protegem seus recursos naturais. Como a Mercedes comenta: Mercedes Bustamante: Então, elas têm um papel, hoje, muito importante, porque vários dos últimos grandes remanescentes de Cerrado se encontram, exatamente, nos territórios desses povos e comunidades tradicionais e é muito importante que esses territórios sejam reconhecidos pelo poder público brasileiro, permitindo, então, que esses povos tenham direito a manutenção de seus meios tradicionais de vida. E da mesma forma, a sociedade brasileira só tem a ganhar com essa riqueza cultural que também pode ser uma enorme fonte de soluções para os nossos problemas atuais. Camila Ramos: Isso que a Mercedes falou é muito interessante, já que as populações tradicionais são constantemente ameaçadas e, até mesmo, mortas por aqueles que invadem suas terras. Então, vamos entender a visão desses dois renomados pesquisadores que ouvimos hoje sobre a situação atual do Brasil.  O combate ao desmatamento não é um assunto novo. Na verdade, a discussão desse tema já dura décadas, desde as primeiras conferências do clima. E nessas reuniões internacionais, mais especificamente no Acordo de Paris, o Brasil se comprometeu a zerar o desmatamento na Amazônia Legal e reflorestar 12 milhões de hectares até 2030. O que hoje sabemos que essas metas estão longe de se tornarem verdade, como pudemos ver nesse episódio. Aliás, Na Cúpula do Clima, o presidente Bolsonaro deixou de lado os comentários sarcásticos e até que assumiu um tom mais moderado no discurso, prometendo acabar com o desmatamento ilegal em nove anos e alcançar a neutralidade climática até 2050. No entanto, como vimos, seu governo continua cortando verbas para fiscalização do meio ambiente. Ah, ele também já declarou interesse pela saída do Brasil do Acordo de Paris. Por isso, o discurso de Bolsonaro foi visto com muito ceticismo pelos líderes internacionais e especialistas na área. Sobre isso, o Artaxo comenta: Paulo Artaxo: A sociedade brasileira tem que se unir contra a criminalidade que domina o desmatamento da região Amazônica, contra a criminalidade que mata e compromete a vida dos povos indígenas e contra a criminalidade de invasão de terras públicas na região Amazônica. Quer dizer, é intolerável, que em pleno século XXI, que atividades como essas ainda ocorram e, na verdade, nós precisamos de políticas públicas claras, fortes e implementadas por todos os governos, que sejam políticas de estado para proteger a destruição da floresta Amazônica, porque isso é um patrimônio que terá um valor inestimável para as próximas gerações de brasileiros e é nossa obrigação fazer tudo para preservar para as próximas gerações até que nós possamos explorar economicamente os enormes recursos da biodiversidade que a floresta Amazônica embute. Camila Ramos: E a economia é um fator motivador para mudança, afinal, não só nossa produção agropecuária será afetada com o aumento do aquecimento global, como as relações internacionais do Brasil serão comprometidas com o descaso do governo atual. Diversos países europeus já estão limitando a compra de produtos brasileiros porque não querem alimentar o mercado ilegal do desmatamento e pedem que o Brasil siga os valores acordados em Paris. Sobre a economia, a Mercedes concorda com o Artaxo: Mercedes Bustamante: As mudanças ambientais globais, elas se constituem, hoje, um dos grandes desafios da humanidade e o Brasil não está afastado desses desafios. Então, é muito importante, que a questão da conservação ambiental ela se torne uma política de Estado efetiva para a geração presente, mas, também, para as futuras gerações. Dificilmente o Brasil vai conseguir fazer uma retomada econômica duradoura se ele não pensar claramente na questão da conservação dos recursos naturais. Nós somos um país cuja economia depende da produção de energia hidrelétrica, cuja economia depende da produção agropecuária, e ela pode, então, ser bastante prejudicada caso o Brasil não considere a questão ambiental como uma questão econômica também. Assim chegamos ao fim deste episódio, mas antes, nós do Escuta Clima queremos deixar nosso apelo para sociedade brasileira e para o poder público, que limitem a emissão de gases de efeito estufa e cuidem da nossa biodiversidade e população que estão na linha de frente das mudanças climáticas. Agradeço a todos os pesquisadores do INCT sobre Mudanças Climáticas que colaboraram com esse projeto. E agradeço a você, ouvinte, por acompanhar a nossa série. Mas caso você tenha chegado agora, ouça os episódios anteriores, que estão disponíveis nessa mesma plataforma que você está nos ouvindo agora. Eu sou Camila Ramos. E este é o Escuta Clima. Um podcast sobre pesquisas relacionadas ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia sobre Mudanças Climáticas. Este podcast é apoiado pelo Programa Mídia Ciência da FAPESP. Este projeto de jornalismo científico, está sendo desenvolvido no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade, da Unicamp. E é uma seção da revista ClimaCom e Rede de Divulgação Científica e Mudanças Climáticas. Tem a supervisão científica da pesquisadora Simone Pallone de Figueiredo e jornalística da pesquisadora Susana Dias. A trilha sonora foi desenvolvida pelo Lucas Carrasco, que tem apoio do PIBIC, do CNPq. A edição do podcast é feita pelo Octávio Augusto Fonseca, da Rádio Unicamp, com apoio do Gustavo Campos, que tem suporte da bolsa SAE. A divulgação nas redes sociais é feita pela Helena Ansani Nogueira. A locução da vinheta é de Bruno Moraes.
16 minutes | Apr 22, 2021
#128 – Tá em alta – ep. 3: Patentes
Neste novo episódio do Oxigênio, damos continuidade à série Tá em Alta, que trata de temas relacionados à tecnologia, inovação e empreendedorismo. Neste terceiro episódio, a jornalista Thais Oliveira fala sobre invenção, inovação e patentes, apresentando vários exemplos e histórias bem representativas do universo das patentes. E para esclarecer algumas questões, ela conversou com a Paula Huber, que é farmacêutica especialista em patentes e que trabalha, atualmente, na indústria química. Um dos temas abordados pela Paula interessa à sociedade neste momento, já que diz respeito a um mecanismo da Lei de Patentes, que é a licença compulsória, que talvez seja usada para garantir acesso às vacinas contra a Covid-19. O episódio conta, ainda, com um guia de como depositar uma patente. O texto, produção e edição do episódio foram feitos pela Thais. Thais: Olá, pessoal (!) sejam bem-vindas e bem-vindos ao terceiro episódio do podcast Tá em Altasso Neste programa nós pretendemos tratar de assuntos relacionados à inovação tecnológica e empreendedorismo de uma forma simples e explicativa. Isso porque no nosso cotidiano esses assuntos estão muito em alta, sempre citados na internet, nas escolas, nas universidades. Mas nem sempre todo mundo sabe na prática o que inovação, startups ou tecnologia significam. Neste episódio, nós falaremos sobre patentes. Entenderemos o que elas são e quais são suas características. Além disso, também vamos saber qual é o processo de registrar uma patente a partir de uma invenção. As patentes também estão muito em alta neste ano porque elas têm tudo a ver com as novas vacinas que tem tudo a ver com a pandemia e nós vamos entender o porquê disso. Ah, lembrando que muitos termos que nós vamos citar já foram tratados nos podcasts anteriores como o significado de tecnologia, palavras como inovação produto e processo. Então se você ficar com alguma dúvida confira os últimos episódios. Antes de falarmos diretamente sobre as patentes existem três conceitos relacionados a ela que são importantes de serem diferenciados: descoberta, invenção e inovação. A descoberta ocorre quando alguém descobre algo que já existe na natureza, mas que não tem influência do ser humano. Por exemplo, quando os cientistas descobriram as funções das organelas das células, eles não resolveram um problema, pesquisaram e descobriram sua existência. Já a invenção ocorre quando alguém cria algo novo a partir da combinação entre elementos preexistentes. Um exemplo para ficar mais claro para a gente, é o da invenção da cirurgiã dentista Therezinha Beatriz Zorowich. Ela estava cansada de ter que usar uma bacia para lavar o arroz e depois outra bacia para escorrê-lo, então em 1959 ela teve a ideia de juntar essas duas ações em uma só, e assim foi inventado o escorredor de arroz. Entretanto, nesse caso é importante nós mencionarmos que nem toda invenção pode ser considerada uma inovação. Isso por que ela só se torna de fato uma inovação quando gera um valor para sociedade, ou seja, ela consegue proporcionar um desenvolvimento social e econômico Um exemplo de inovação é a caneta esferográfica. Até a sua criação as canetas demoravam pra secar e elas borravam constantemente. Em 1930, o húngaro Lazlo Biró desenvolveu uma caneta que evitava que a tinta borrasse e quando aplicada no papel, ela secava com muita rapidez. O líquido da tinta foi desenvolvido pelo seu irmão Gyõrgy Biró, que era químico. Depois da criação, os dois irmãos patentearam a invenção. Bom, como acabamos de conhecer as diferenças desses conceitos, agora vamos direto ao mundo das patentes. Patente é o registro que o governo concede a uma pessoa ou empresa que cria uma invenção. Ela tem validade de até 20 anos e impede terceiros de usufruírem comercialmente dela. Cada país tem o seu órgão responsável por fazer essa concessão. Aqui no Brasil, nós temos o Instituto Nacional da Propriedade Industrial, o INPI. Nós vamos falar bastante dele hoje! Para se patentear algo, o INPI comenta que três requisitos devem ser atendidos. O primeiro requisito é o de novidade. É patenteável a invenção que seja comprovada como algo totalmente novo. E um detalhe muito importante: ela não pode ter sido divulgada em nenhum artigo científico ou congresso, e nem mesmo ter sido desenvolvida (já estar sendo produzida) por uma empresa. E essa novidade tem que valer para o mundo inteiro, não é só para o Brasil. Não pode existir uma patente igual ou similar que já esteja em vigência em outro país. O segundo requisito é o da atividade inventiva. A pessoa inventora tem de ser capaz de convencer com argumentos técnicos que alguém da mesma área que a dela não conseguiria com facilidade desenvolver a mesma invenção. Para cumprir este requisito é preciso apresentar as dificuldades e ter um problema técnico superado com essa invenção. Não pode ser simplesmente a combinação de dois elementos que resultam em uma conclusão já conhecida. Eu vou explicar esta parte de uma forma mais clara. Para entender, a gente pode imaginar aquelas canetas que têm uma lanterna na ponta. Não é possível patentear esta caneta porque ela é apenas a combinação de dois elementos que continuam funcionando da mesma forma. Não existe nenhuma dificuldade identificada para a criação desse objeto e nenhum problema técnico que está sendo superado. E o terceiro requisito é o da aplicação industrial, ou seja, a forma que se escala a invenção em uma indústria. Mas, como é possível identificar se ela tem esse perfil? Existem dois tipos de patente: a patente de invenção é para novas tecnologias sejam elas um produto ou processo. O outro tipo é o de modelo de utilidade que é para modelos mais simples e restrito a produtos como ferramentas e utensílios. Ele vale tanto para a criação de um novo, como para a melhoria funcional de um já existente. E é importante comentar que nem tudo que se inventa pode ser patenteado. Uma ideia abstrata que se tem ou uma obra de arte, por exemplo. Assim como descobertas científicas ou métodos que não possam ser industrializados. Neste caso é possível proteger as criações pelo direito autoral, mas aí é outra história e não pode ser protegida pela patente.   Geralmente essas invenções que podem ser patenteadas são frutos de pesquisas feitas em laboratórios, universidades ou institutos de pesquisa. Mas, também existem exemplos de inventores fora desse ecossistema que identificaram uma dificuldade no seu meio e resolveram desenvolver uma solução com direito a registro de patente. Este é o caso da Anna Luisa Santos que inventou o Aqualuz, uma tecnologia que desinfeta a água usando radiação solar. Ele se trata de um filtro que é capaz de purificar a água da chuva proveniente de cisternas localizadas em áreas rurais. A ideia surgiu quando a Ana ainda estava no ensino médio. Ela submeteu pedido da patente em 2018 e hoje ela segue com o desenvolvimento do produto na sua própria startup. Para aprofundar nosso assunto, eu convidei a Paula Huber, que é farmacêutica especialista em patentes e que trabalha, atualmente, na indústria química. Paula, nós vimos que existem diversos requisitos a serem atendidos. Talvez para alguém que está num ambiente de pesquisa esse processo de registro de patente seja muito mais claro e mais natural. Mas, e pra quem deseja criar ou registrar uma invenção de forma independente. Qual seria sua indicação? Haveria uma forma de essa pessoa também buscar apoio pra isso? Paula: A minha indicação, e provavelmente a indicação que qualquer especialista de patentes daria para um inventor, seja ele independente ou não, é garantir a possibilidade de proteção da sua invenção por meio de um depósito de pedidos de patente antes de qualquer divulgação. É possível sim um inventor independente desenvolver uma invenção. Mas garantir que ela tenha sucesso depende também da possibilidade de exclusividade garantida por uma patente. Existem inúmeras invenções que foram desenvolvidos por inventores independentes, até mesmo donas de casa, como por exemplo a invenção do protótipo de uma fralda descartável, mas, dependendo da área de atuação do inventor independente ele pode precisar de ajuda para desenvolver sua invenção. Isso pode ser conseguido por meio de rodadas de apresentação do seu produto para investidores, por exemplo. O que já é considerado uma divulgação. Thais: Agora, que já somos craques em saber o que são as patentes e seu objetivo, vamos fazer aqui um passo a passo de como funciona o depósito de uma patente. Antes de tudo é importante a pessoa inventora fazer uma busca no site do INPI e até em sites de registros de patente internacionais para saber se a invenção é realmente algo novo e se ninguém tem alguma patente parecida. Isso é importante porque se já existir uma patente muito próxima, a pessoa pode fazer o processo inteiro de pedido e aí quando tiver lá no final, o INPI simplesmente recusa o registro da patente. Depois de feita esta checagem, é hora de identificar qual dos dois tipos é a patente: invenção ou modelo de utilidade. Depois disso é o momento em que se inicia o pedido da patente pelo site do INPI, com a inclusão de documentos que descrevam a invenção, e depois é necessária também a realização do pagamento de taxas. Lá no site você consegue ver a informação das taxas, e quais documentos você tem que inserir, tudo certinho. Todo o processo pode ser acompanhado. Ele fica em sigilo por até 18 meses. E se a patente for de fato concedida, ou seja, se estiver tudo certo pelo INPI, todos os requisitos atendidos, se não tiver outra patente similar e tudo mais, ela tem validade de 20 anos para as de invenção e 15 para as de modelo de utilidade.  A notícia ruim desse processo é que ainda demora um pouco para sair o registro. Mas a notícia boa é que o INPI está com um planejamento para acelerar as análises dos pedidos. Se você for uma inventora ou um inventor em potencial, eu acredito que já pegou várias dicas sobre como depositar ou uma patente. Mas agora, eu gostaria de fazer outra pergunta para a Paula. Qual você acha que é a relação de todo esse processo que começa com uma simples ideia, se torna uma invenção e depois impacta toda uma sociedade? Paula: As invenções, elas não precisam ser complexas para impactar uma sociedade. Basta simplesmente que resolvam um problema que seja de interesse de grande parte de uma sociedade. E neste sentido, a gente pode citar por exemplo a invenção da roda. A partir dela, diferentes tipos de problemas foram resolvidos e que tem utilização e impacto até os nossos dias. Eu diria que para impactar uma sociedade, uma invenção deve resolver um grande problema que ela enfrenta. Mas não é preciso impactar grandes sociedades ou mesmo resolver grandes problemas para se ter uma invenção de sucesso. Se olharmos ao nosso redor, fazemos uso de muitas invenções no nosso dia a dia. Ou seja, a partir de uma invenção é possível impactar um menor número de pessoas, e mesmo assim ser extremamente importante. Se você tem uma ideia para resolver algum problema, não menospreze essa invenção. As invenções facilitam nossa vida, o nosso dia a dia. E as mudanças no nosso cotidiano, fazem com que as invenções e novas invenções sejam necessárias a todo momento. E elas não precisam ser complexas para serem valiosas e terem impacto na vida de muitas pessoas. Invenções simples podem sim ter grandes impactos. Bom, tem um detalhe muito importante que faltou eu mencionar. Todo esse processo que alguém realiza para patentear uma invenção tem validade somente para o Brasil. Por isso, para cada país que se tenha o interesse de se proteger uma patente é preciso depositar um pedido de patente. E o que isso significa? Significa que se uma empresa da Índia conhecer um produto que foi desenvolvido e patenteado aqui no Brasil, ela pode explorá-lo e desenvolvê-lo lá. Isso se o inventor daqui não tiver patenteado sua invenção também na Índia. Agora, para os inventores que desejem analisar com tempo os territórios onde querem depositar suas patentes existe o PCT, um tratado internacional. Este tratado tem o objetivo de proteger as patentes enquanto essa análise é realizada. E falando sobre meio internacional nesta pandemia teve um amplo discurso sobre as patentes das vacinas e a possível quebra delas. Pra começar, eu queria, Paula, que você comentasse um pouco sobre essa questão da quebra da patente. E em segundo plano, quando se trata de um problema de saúde pública mundial, você acha que a propriedade intelectual, ela é e tem que ser tratada de forma diferente? Paula: Quando falamos de saúde pública, falamos na garantia de acesso a medicamentos e tratamentos para que todos tenham acesso. E para garantir o direito à saúde, a lei da propriedade industrial brasileira apresenta um mecanismo que é conhecido como licença compulsória ou popularmente conhecido como a quebra de patente. Esse mecanismo, consiste na suspensão temporária do direito de exclusividade de uma patente, fazendo com que a invenção ou o objeto que é protegido por aquela patente possa ser produzida e comercializada por terceiros que não o titular da patente sem a necessidade de aprovação do titular da patente. A invenção então pode ser produzida por terceiros, mas esses terceiros pagarão royalties ao titular da patente pela exploração da sua invenção. E é por isso que o termo “quebra de patente” não é um termo corretamente utilizado. O termo correto é a licença compulsória. Porque se trata de uma licença que é ofertada para aquela patente né para que seja desenvolvida aquela invenção só que esta licença, ela é realizada de maneira compulsória sem que haja comum acordo com o titular. E essa licença, ela é utilizada somente em condições específicas, justamente como um mecanismo de defesa contra o abuso do titular da patente ou em caso de interesse público como uma emergência nacional como a que estamos vivendo hoje pela pandemia, pela covid-19. Mas, recorre-se a esta licença compulsória em último caso. Somente quando não é possível um comum acordo entre o detentor da patente e terceiros. Neste programa, nós vimos que de forma individual para o inventor, cientista ou uma empresa as patentes são essenciais para que terceiros não tenham o direito sobre elas. E também para que os inventores se sintam seguros para continuarem pesquisando e desenvolvendo invenções, tecnologias. Para a sociedade em geral elas são essenciais porque compartilham ideias que podem melhorar o simples dia a dia das pessoas como o escorredor de arroz ou de uma forma mais impactante como o filtro à base de radiação solar. Sem mencionar o papel importante que elas representam para proporcionar o acesso de medicamentos e vacinas em momentos de pandemia, que é o momento em que nós vivemos agora. Esse podcast foi escrito, produzido, e editado por mim Thais Oliveira. E ele faz parte do Trabalho de Conclusão de Curso da Especialização em Jornalismo Científico do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp. Ele tem orientação da professora Simone Pallone. Eu espero que vocês tenham gostado de conhecer mais sobre esse universo das patentes e porquê elas estão tão em alta. Um abraço e até a próxima.
20 minutes | Apr 8, 2021
#127 – Escuta Clima ep.5 – A produção de alimentos nos dois lados da porteira
A agropecuária é uma atividade de extrema importância para a sobrevivência humana e para a economia do Brasil. No entanto, com o agravamento das mudanças climáticas, a segurança alimentar de grande parte da população mundial pode estar em risco. Por isso, entenda como funciona a produção de alimentos na porteira para dentro (nas fazendas) e seus impactos na porteira para fora (com os consumidores) e descubra como a ciência continua buscando alternativas sustentáveis para garantir um futuro com mesas fartas para todos.  A série Escuta Clima é produzida pela Camila Ramos e está ligada ao curso de Especialização em Jornalismo Científico do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) e ao Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade (Nudecri) da Unicamp. O projeto tem o objetivo de divulgar as pesquisas e pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia sobre Mudanças Climáticas (INCT-MC) e é apoiado pela bolsa Mídia Ciência da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).  —————————————————————————————————————-   Camila Ramos: Café, milho, arroz, feijão, soja, girassol, mandioca e frutas de clima temperado, como pêssego e uva, são alimentos que estão em risco por causa do aquecimento global. Risco é uma palavra importante quando falamos sobre a agricultura, isso porque é dependente dos recursos naturais, ou seja, qualquer alteração no clima pode afetar as condições do solo, da temperatura, da disponibilidade de água, prejudicando a safra da estação. Portanto, quando pensamos em um futuro com, pelo menos, 1,5ºC a mais na temperatura global, pensamos também em mais pessoas em situação de vulnerabilidade. Além disso, se não for bem planejada, com consciência ambiental, a atividade pode causar mais danos ao clima. No episódio de hoje, vamos conversar com pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia sobre Mudanças Climáticas para entender como a produção de alimentos pode se tornar mais sustentável nos próximos anos e, ao mesmo tempo, garantir uma maior segurança alimentar. E entre as medidas sustentáveis estão a agrofloresta e a recuperação de áreas de pastagens degradadas, que são áreas de pesquisas dos nossos entrevistados: o Jurandir Zullo Junior, que é pesquisador do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura, o CEPAGRI, da Unicamp; a Priscila Coltri, que é agrônoma, pesquisadora e diretora do CEPAGRI; e o João Paulo, que é engenheiro agrônomo e doutorando da Faculdade de Engenharia Agrícola da Unicamp. Eu sou Camila Ramos e você está ouvindo o Escuta Clima. Um podcast para divulgar as pesquisas do INCT Mudanças Climáticas, que é vinculado ao Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp, o Labjor. O Escuta Clima é também uma seção da revista ClimaCom e Rede de Divulgação Científica e Mudanças Climáticas. [Vinheta do podcast Escuta Clima] Camila Ramos: Segurança Alimentar é definida como uma situação em que todas as pessoas, a todo momento, têm acesso físico, social e econômico a alimentos nutritivos, seguros e suficientes para as suas necessidades diárias e preferência alimentar para uma vida ativa e saudável. Essa é uma definição da FAO (Food and Agriculture Organization), que é um braço das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura. Ainda segundo a ONU, devemos chegar ao número de 9,7 bilhões de pessoas no planeta até 2050 e cerca de 11 bilhões até o final do século. Essa foi a conclusão do relatório intitulado Perspectivas Mundiais da População de 2019. Nesse cenário, será que conseguimos garantir uma segurança alimentar para toda essa população? O Jurandir responde essa questão: Jurandir Zullo Junior: Olha, garantia é difícil, porque o desafio da segurança alimentar não é só a produção, é a distribuição e o acesso ao alimento. Na verdade, a alimentação não é só produzir o alimento, é, de alguma forma, dar acesso ao alimento. Então, tem a parte econômica, tem a parte cultural, porque as pessoas… Cada região, cada país tem uma cultura alimentar diferente. Então, assim, dá para dividir, como nós fazemos na área agrícola, “da porteira para dentro” e “da porteira para fora”.  Camila Ramos: A porteira para dentro seria a produção de alimentos em si, ou seja, os campos de plantações e a criação de animais. Já a porteira para fora seria todo o caminho seguido pelos produtos da fazenda até a nossa mesa, desde o transporte, as condições das estradas, até a indústria e o mercado. Então, para garantir uma segurança alimentar é preciso levar em consideração não apenas os recursos naturais, mas, também, os aspectos econômicos e a desigualdade social, que limitam o acesso das pessoas aos alimentos dependendo, por exemplo, de onde eles são vendidos e dos preços na hora da compra. Outra questão importante a se considerar é o desperdício, que o João comenta: João Paulo: Além de questões econômicas mais gerais como emprego e renda, medidas que favoreçam o acesso ao alimento devem tratar da redução das perdas que ocorrem entre a lavoura e a mesa das pessoas. De acordo com a FAO, cerca de um terço do que é produzido no mundo, acaba se perdendo nesse trajeto, o que, na prática, significa comida deixando de chegar ao prato das pessoas. Os sistemas e as etapas envolvidas a cada refeição que fazemos é complexo e obstáculos importantes ainda precisam ser superados. Camila Ramos: Bom, como estamos falando sobre as mudanças climáticas, vamos entender o processo que acontece da porteira para dentro e como a produção de alimentos pode afetar e ser afetada pelo aquecimento global.  A agropecuária é conhecida como um dos grandes fatores que intensificam as mudanças climáticas, uma vez que essa é a principal forma de transformação do solo no Brasil atualmente.  Quando não há um planejamento responsável de conservação ambiental ou, até mesmo, é feita de forma ilegal, a agropecuária pode envolver a abertura de grandes áreas da vegetação nativa, degradando a região para o plantio (geralmente as monoculturas) ou para criação de gado (na maioria das vezes de forma extensiva). Por isso, é preciso pensar em alternativas, novas técnicas e boas práticas. O João, que estuda especificamente áreas de pastagens para pecuária, comenta sobre as práticas sustentáveis da produção de carne: João Paulo: No entanto, se olharmos para as práticas conservacionistas da produção de pastagem, vemos que, recuperando áreas de pasto degradado é possível mitigar quase quatro toneladas de carbono por hectare em apenas um ano. A maior parte dessas áreas estão sendo subutilizadas, ou seja, com menos gado do que poderia, o que reduz o retorno monetário pelo produtor e deixa o empreendimento menos sustentável. Considerando que o Brasil tem 167 milhões de hectares de pastagens, fica evidente o potencial ambiental envolvido. Camila Ramos: Atualmente no Brasil, existem grandes áreas de pastagens que estão degradadas e que, se uma parcela for recuperada, já pode ajudar na mitigação dos impactos ambientais, ao mesmo tempo, o aumento de produtividade desses campos pode evitar que mais áreas de pastagens sejam abertas. A proposta do João é aprimorar esses dados, passando do quantitativo para o qualitativo, como ele explica: João Paulo: Nos nossos estudos, estamos avaliando o potencial produtivo de áreas de pastagens distribuídas por todo o território nacional e definindo a distribuição espacial de áreas que mostram que pastagens bem manejadas podem apresentar eficiência comparável a vegetação nativa na mitigação de carbono da atmosfera. Camila Ramos: Da mesma forma que na pecuária, a agricultura, se não for feita com bases sustentáveis e responsáveis, pode se tornar um problema. Que é o que estamos vendo atualmente na expansão da fronteira agrícola no Cerrado, na Amazônia e em outros biomas brasileiros, ameaçando tanto a biodiversidade local quanto as comunidades tradicionais. Aliás, esse é o tema do próximo episódio. Por isso, não deixe de acompanhar a série de podcast nessa mesma plataforma que nos ouve agora! A Priscila comenta sua visão sobre esse assunto: Priscila Coltri: Eu particularmente, enquanto agrônoma, eu não gosto muito dessa visão de que a agricultura é a vilã. Eu acho que a agricultura, se ela for bem manejada, se ela for manejada de forma sustentável, sem desperdício, ela consegue ser a área que produz alimento, a área que pode sequestrar uma série de gases de efeito estufa e a área que, no Brasil, é um dos grandes pontos econômicos. Camila Ramos: Como a Priscila falou, a produção de alimentos continua sendo uma atividade essencial para humanidade e é a principal fonte econômica do país. Por isso, é preciso pensar em alternativas. A primeira opção sustentável é a valorização das culturas locais, que a Priscila novamente explica: Priscila Coltri: Quando a gente vê que o risco das culturas que atualmente estão sendo plantadas aumentam, a gente tem que olhar por um outro lado também, que talvez nos abra outras oportunidades de cultivar algumas culturas que são nativas daquele local. Talvez seja hora de repensar um pouco quais são as culturas que estão sendo plantadas em algumas regiões e dar a chance para as culturas locais, para que essas culturas locais possam, também, se destacar criando um novo negócio. E aí, as áreas agrícolas nesse sentido tem esses dois lados. Ao mesmo tempo que elas podem ser grandes emissoras de gases de efeito estufa, se bem manejada, se manejadas de forma sustentável, elas podem ser grandes sequestradoras de gases de efeito estufa, estocando CO² em sua biomassa, no solo e deixando essa relação de produção neutra. A gente também tem a chance de olhar para novas culturas e novos negócios. Então a cultura da palma e N outras culturas que podem aparecer ali, como uma nova chance de negócio para esse povo local que pode se tornar muito mais vulnerável em cenários futuros de mudanças climáticas.  Camila Ramos: Um exemplo disso é o café, que é um produto extremamente importante na história do Brasil até os dias atuais. Ele era produzido em grande escala algumas décadas atrás, dentro de enormes fazendas em diversas regiões do país. No entanto, esse grão tem uma faixa climática muito estreita. Para o fruto se desenvolver, é preciso uma média anual de 23ºC e, se a temperatura ultrapassar os 35ºC, as flores podem acabar abortadas e, consequentemente, a planta não terá frutos. Então, em vista do aquecimento global, o risco de produção aumenta, o que pode afetar a economia. A Priscila fala sobre esse exemplo específico, que é parte da sua pesquisa em parceria com o Jurandir: Priscila Coltri: A produção, ao longo dos anos, pode ser que ela caia, mas o que a gente tem visto nos últimos anos é uma mudança de área de plantio. Então, alguns estudos a gente já realizou e a gente viu que ao invés de grandes propriedades como era plantado antigamente, essa cultura está se reduzindo em pequenas propriedades e em algumas localidades que climaticamente são mais adequadas para elas. Como em São Paulo, a gente reparou que o plantio tem se concentrado em locais menores e em locais que antigamente eram de origem, que são locais que têm uma altitude maior, então são pouco mais frio que os outros e que para São Paulo é um frio que é adequado para a cultura.  Camila Ramos: Além disso, a produção de café também começou a prezar mais pela qualidade e a especialidade do grão e da torra do que pela quantidade da safra, como antigamente. Isso porque, atualmente, o mercado pede um café mais gourmet. Bom, outro problema do café (e que pode ser um desafio de outras espécies de plantas) é a questão das doenças, que ocorrem em uma faixa climática específica. Com o aumento da temperatura, a ocorrência de pragas pode ser antecipada e danificar a safra. Como o Jurandir comenta: Jurandir Zullo Junior: Às vezes, você pode ter doenças novas, porque elas não aconteciam ali porque você não tinha a faixa favorável, e pragas, também. E doenças talvez que eram endêmicas ali e, de repente, desaparecem. Podem desaparecer porque fica desfavorável para ela né, mas surgem outras, né. Por isso que é um desafio isso. Também é um desafio de adaptar as plantas, porque o melhoramento genético no Brasil é muito focado em pragas e doenças, mais de 90% dos melhoramentos, segundo a Embrapa. Camila Ramos: Outra alternativa para tornar a produção de alimentos mais sustentável é a agrofloresta, que, inclusive, já está sendo utilizada em algumas culturas do café. A agrofloresta é uma técnica na qual são unidos os produtos agrícolas com produtos florestais. Ou seja, ao contrário da monocultura, aqui é possível cultivar diversos alimentos em uma mesma área de forma que as plantas ajudem umas às outras. Por exemplo, uma árvore pode fazer sombra para um arbusto que não aguente altas temperaturas, como o café. No entanto, é preciso muito estudo para saber quais produtos podem ser plantados juntos para que não haja competição por nutrientes e recursos naturais.  De modo geral, a agrofloresta pode trazer mais benefícios que malefícios, desde que bem planejada. Ouça a explicação da Priscila: Priscila Coltri: A agrofloresta, ela também tem um outro lado que é muito bom economicamente é que você passa… que você pode ter também a produção de outros produtos juntos naquela área. Então, a gente já viu às vezes a produção de manga associada ao café arábica e, enfim, a gente pode ter outros produtos que, às vezes, numa época de queda no preço do grão, pode fazer com que o produtor tenha uma renda ali a mais do que só aquele grão que talvez esteja numa época de baixa.  Camila Ramos: Além disso, a técnica incentiva a plantação de árvores, o que é ótimo para o meio ambiente. E é possível, também, associar as plantações com a criação de animais. Bom, sabemos que essas técnicas são boas alternativas.  Mas elas não são amplamente disseminadas e colocadas em práticas pelos produtores, já que ainda temos a predominância de monoculturas e criações extensivas. Por isso, vamos entender quais são os obstáculos e como superá-los. Entendemos nesse episódio que a agropecuária é uma atividade de risco e é dependente dos recursos naturais, como clima, temperatura e disponibilidade de água. Também vimos várias opções sustentáveis para o futuro da produção de alimentos. Então, quais os obstáculos pros agricultores colocarem essas alternativas em prática? O João responde essa questão: João Paulo: Os obstáculos enfrentados pelos agricultores para a adoção dessas práticas são vários. Começando pelos entraves culturais, vemos que o tradicionalismo é uma característica marcante, principalmente entre os produtores de menor poder econômico, educacional e social. Isso, porém, não significa que eles sejam fechados para melhorias, mas é preciso mostrar como fazer e os resultados obtidos para incentivá-los a incorporar novas práticas na sua produção. Camila Ramos: O que o João disse é muito interessante, afinal, as técnicas desenvolvidas dentro da academia, pesquisadas e aprimoradas estão muito distantes do agricultor no interior do país com sua fazenda familiar, cujo sucesso da produção é essencial para garantir sua renda. Nesse aspecto a Priscila pontua: Priscila Coltri: É muito complicado você entrar com uma técnica nova e que se não for bem feita, pode não dar certo em áreas nas quais os produtores não acreditam nem na técnica, nem nas mudanças do clima. Então tem que ser todo um trabalho, acho que do setor mesmo e com a iniciativa pública e com os institutos e com a Ciência em geral, para conscientizar. Camila Ramos: O Jurandir concorda com esses pensamentos e complementa: Jurandir Zullo Junior: O agricultor é um grande tomador de decisões, então ele precisa estar sempre tomando decisões, se ele vai comprar um ou dois sacos de adubo, o que ele vai plantar, quando ele vai colher, onde ele vai vender. Ele está sempre tomando decisões. Acho que a nossa função, no lado científico, é ajudar a fornecer essas informações. Camila Ramos: Outro fator que estimula a adoção de novas práticas pelos agricultores de diversas escalas de produção é a pressão externa. Desde o consumidor que começa a exigir selos que atestem a qualidade e segurança do produto quanto ao uso de agrotóxicos, ou ainda selos que garantam uma produção sustentável e orgânica, até pressão internacional de países como a França, que estão decidindo diminuir sua dependência de alimentos produzidos no Brasil em áreas de desmatamento e degradação ambiental. O que é um problema, pois apesar de haver realmente desmatamento e degradação associados à produção de alimentos, não podemos generalizar a atividade agropecuária no Brasil. Os desmatamentos e queimadas em florestas nativas são atividades ilegais, como o João explica: João Paulo: Antes de generalizar, é preciso entender melhor a dinâmica por trás da pecuária que sucede o desmatamento criminoso, que se divide em duas fases. Primeiro, ocorre a extração da madeira e do minério de maior interesse econômico. Em seguida, a vegetação menos valiosa é derrubada e queimada para limpeza da área, que posteriormente será submetida à manobra de falsificação de documentos para se obter a posse da terra, atividade comumente conhecida como grilagem. O pouco gado que vem após a remoção da vegetação nativa serve apenas para reforçar a demarcação da terra invadida. E após conseguir a posse dessa terra, ela então é colocada à venda, praticando o mesmo valor de terras legais ou se torna um empreendimento rural. O que vemos aí não é um sistema sustentável de obtenção de lucro da comercialização da produção agrícola, que respeita regras ambientais de mercado, mas, sim, uma extração de recursos naturais de valor econômico de forma predatória combinado com a especulação imobiliária. Camila Ramos: Mas vamos entender melhor sobre os impactos dessas atividades ilegais contra os ecossistemas brasileiros no próximo episódio. Por isso, não deixe de acompanhar a série de podcast nessa mesma plataforma que nos ouve agora. Eu sou Camila Ramos. E este é o Escuta Clima. Um podcast sobre pesquisas relacionadas ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia sobre Mudanças Climáticas. Este podcast é apoiado pelo Programa Mídia Ciência da FAPESP. Este projeto de jornalismo científico, está sendo desenvolvido no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade, da Unicamp. E é uma seção da revista ClimaCom e Rede de Divulgação Científica e Mudanças Climáticas. Tem a supervisão científica da pesquisadora Simone Pallone de Figueiredo e jornalística da pesquisadora Susana Dias. A trilha sonora foi desenvolvida pelo Lucas Carrasco, que tem apoio do PIBIC, do CNPq. A edição do podcast é feita pelo Octávio Augusto Fonseca, da Rádio Unicamp, com apoio do Gustavo Campos, que tem suporte da bolsa SAE. A divulgação nas redes sociais é feita pela Helena Ansani Nogueira. A locução da vinheta é de Bruno Moraes.
33 minutes | Apr 2, 2021
#126 – Série Casa de Orates – Ep. 5 – Depois de um fim
O tema deste quinto episódio do Casa de Orates é a saúde mental de pessoas afetadas por tragédias. Como seguir a vida após uma grande catástrofe? Que tipo de suporte essas pessoas precisam? Para explicar um pouco sobre toda a estrutura de apoio psicológico presente nesses cenários, trouxemos alguns eventos que marcaram a história do Brasil na última década: o incêndio na boate Kiss, o rompimento da barragem em Brumadinho e a queda do avião da Chapecoense. Além da perda de pessoas queridas, os afetados ainda têm que lidar com a impunidade, já que todas essas tragédias foram consideradas crimes e os processos seguem em aberto.  Conversamos com Melissa Couto, psicóloga especialista em emergências e desastres, que atuou nessas tragédias, e com Maria Carolina da Silveira Moesch, psicóloga e coordenadora do curso de psicologia da Unochapecó, que integrou  o comitê gestor da resposta ao acidente aéreo da Chapecoense. Também participam  deste episódio Letiere Flores, psicóloga que fez um estudo sobre os psicodiagnósticos dos sobreviventes da boate Kiss e André Polga, produtor editorial que criou a página Kiss: que não se repita. Contamos ainda com o depoimento de Natalia Oliveira, irmã de Lecilda Oliveira, uma das vítimas do rompimento da barragem em Brumadinho.  Conheça mais sobre as associações, grupos de apoio e iniciativas citadas neste episódio: Associação dos familiares de vítimas e atingidos pelo rompimento da barragem Mina Córrego do Feijão (Avabrum):  https://avabrum.org.br/; Redes sociais: @Avabrumoficial (Facebook). Associação dos Familiares e Amigos das Vítimas do Vôo da Chapecoense (AFAV-C): Redes sociais: @AFAV.c2017 (Facebook) Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM):  Redes sociais: @AVTSMSantaMaria (Facebook), @avtsm27 (Instagram).  Kiss: que não se repita: Redes sociais: @Kissquenaoserepita (Facebook e Instagram). Programa Santa Maria Acolhe (antigo Acolhe Saúde): mais informações diretamente com a Prefeitura de Santa Maria, no telefone: (55) 3921-7000 _________________________________________ Roteiro RAFAEL REVADAM: Oi. Antes de começar eu preciso dar um recado: nesse episódio, a gente vai tratar de temas sensíveis como grandes tragédias, luto e perda de pessoas queridas. Então, se você não se sente confortável com esses assuntos, talvez esse episódio não seja para você.  NATALIA OLIVEIRA: Eu sou a Natália, irmã da Lecilda, uma das vítimas né, fatais do crime da Vale aqui em Brumadinho. E… no dia do acontecido, eu mandei mensagem pra ela porque era uma sexta-feira. Eu tava assistindo uma série e, de repente, chegou a mensagem no WhatsApp. É… a barragem rompeu. E aí eu encaminhei essa mensagem pra Lecilda. Aí, a segunda mensagem chegou. É a barragem da Vale. Aí eu mandei a mensagem pra ela. Aí, a terceira mensagem que chegou falando assim: É em Córrego Feijão. Aí, quando eu li a palavra Córrego Feijão, eu já liguei pra Lecilda e nesse momento eu percebi que as duas mensagens que eu tinha mandado pelo WhatsApp ela não tinha recebido. Só tava um pauzinho. Aí eu mandei um áudio pra ela no WhatsApp, Lé me liga, pelo amor de Deus! E saí igual uma louca aqui de casa e comecei essa procura pela minha irmã e essa procura tá até hoje. A gente nunca tinha imaginado que poderia acontecer uma tragédia. A gente vê a tragédia na televisão, a gente nunca pensou em estar dentro de uma tragédia, de fazer parte de uma. ANA AUGUSTA XAVIER: Tragédia, substantivo feminino: Acontecimento triste, funesto, catastrófico, que infunde terror ou piedade.  RAFAEL REVADAM: A história de todos nós carrega pequenas tragédias pessoais que nos marcam pela vida toda. Um acidente de carro, uma doença grave, um mal súbito. Acontecimentos inesperados que nos fazem perder o rumo e tiram o nosso chão.  ANA AUGUSTA: Mas também existem tragédias de grandes proporções, que além de afetar individualmente a vida de cada um, causam impacto em uma comunidade inteira. Um bairro, uma cidade, um país, o mundo. RAFAEL REVADAM: A Natalia, que deu o depoimento que ouvimos no começo do episódio, viveu de perto uma dessas catástrofes. A irmã dela, Lecilda, foi uma das vítimas no rompimento da barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho, Minas Gerais, no dia 25 de janeiro de 2019. 259 pessoas morreram. Lecilda e mais 10 pessoas não foram encontradas. ANA AUGUSTA: E este é apenas um dos eventos trágicos coletivos que marcou a história do Brasil nos últimos dez anos. Nessa lista também estão os deslizamentos causados pelas chuvas na região serrana do Rio de Janeiro, em 2011; o incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, em 2013, o rompimento da barragem da Samarco em Mariana, no ano de 2015 e a queda do avião da Chapecoense, em 2016.  RAFAEL REVADAM: Todas essas tragédias têm pontos em comum. Elas são visuais, com imagens marcantes, tiveram alcance nacional. E o mais agravante, todas poderiam ter sido evitadas. ANA AUGUSTA: E se no primeiro momento, a preocupação é com as vítimas, o segundo passo é olhar pra quem ficou. Os sobreviventes, os familiares, os amigos. Como seguir após uma grande catástrofe? Como fica a saúde mental de quem tem que continuar a viver? Que tipo de suporte essas pessoas precisam? Eu sou Ana Augusta Xavier. RAFAEL REVADAM: E eu sou Rafael Revadam, e nesse episódio, vamos falar sobre o apoio psicológico que recebem – ou deveriam receber – todos aqueles que de uma forma ou outra sofrem os impactos de uma grande tragédia. MELISSA COUTO: A gente num desastre diz que a gente tem três fases dele né, a primeira é o caos, a segunda é a reorganização e a terceira é a coordenação. Todo início da resposta ao desastre, a situação é de caos né, uma desordem, ahn. uma falta de coordenação, todo mundo respondendo ao que tem ali sem muita ordenação, achando que tem que resolver o que tá posto, até a gente conseguir se estruturar. ANA AUGUSTA: Essa é a Melissa Couto, psicóloga especialista em emergências e desastres. Ela coordenou o apoio aos afetados do incêndio da boate Kiss, e também trabalhou no suporte após a queda do avião da Chapecoense e do rompimento da barragem em Brumadinho. MELISSA COUTO: Na hora do impacto, a reação comum a todos é essa de caos que eu te disse, tanto pra quem atende quanto pra quem é viti vitimado, afetado. Hoje em dia a gente não usa mais vítimas, a gente usa afetados. a bibliografia vai mudando com o tempo, a gente vai construindo novas perspectivas né, de entendimento naquilo que a gente vai trabalhando. Então assim, a a as reações são muito parecidas com as reações características de luto né, então assim, choque, torpor, negação, ahn, desorganização, ahn, sofrimento agudo, angústia plena, ahn… as reações elas são as mais diversas possíveis porque também vai depender do perfil psicológico que cada um tem e como ele se defende nessas respostas de estresse agudo. RAFAEL REVADAM: Segundo a Melissa, é muito importante que todos os afetados por tragédias recebam apoio rápido e qualificado, pra aumentar a capacidade de resiliência dessas pessoas, e ajudá-las a enfrentar o luto de maneira mais adequada. ANA AUGUSTA: E esse apoio realizado logo após o evento, no momento em que as pessoas estão extremamente vulneráveis e sensibilizadas, é chamado de apoio psicossocial. Nessa prática, o profissional se coloca à disposição dos afetados, pra escutar e acolher. MELISSA COUTO: O apoio psicossocial ele é um apoio diferente, porque as pessoas acham que o psicólogo vai lá atender as famílias e isso não é verdade, tanto que o apoio psicossocial nos Estados Unidos é feito por diferentes profissionais, e não só por psicólogos, os psicólogos trabalham muito mais na gestão disso né, e qualquer profissional que seja capacitado e que tenha esse perfil humanitário, de compaixão, e que tenha a capacitação adequada pode estar lá nesses cenários. Por quê? Porque a primeira questão que a gente realiza chama primeiros socorros psicológicos né, que é nas primeiras 72 horas após o desastre. Esses primeiros socorros psicológicos eles são divididos em 3 módulos, e esses 3 módulos são divididos em acolhimento, apoio e aí reestruturação né. O que acontece, todo, o que a gente vai fazer vai ser acolher a dor das pessoas. Acolhendo a dor das pessoas, fortalecendo esse vínculo, a gente vai apoiar, promovendo um espaço de amparo e de escuta, e aí finalizando, pra gente reestruturar, a gente vai oferecer os serviços que estarão disponíveis. ANA AUGUSTA: Melissa reforça que o apoio psicossocial não é uma intervenção psicoterápica, ou seja, nesse momento a intenção não é analisar sintomas ou fazer diagnósticos, e sim acolher. Além disso, os profissionais que realizam esse apoio também são responsáveis por resolver questões práticas, como impasses financeiros ou organizar o velório das vítimas, por exemplo.  RAFAEL REVADAM: Estes profissionais são coordenados por um comitê de crise, que geralmente conta com a participação de entidades como a Defesa Civil, a Cruz Vermelha, além de voluntários da região ou de fora. Nem sempre, um comitê de crise envolve todos esses atores, isso depende do local onde o desastre acontece. Essa equipe atua durante 90 dias após o evento, e também é responsável pela organização das ações que serão feitas posteriormente.  MELISSA COUTO: Depois desses 90 dias a gente precisa ter os órgãos governamentais responsabilizados por essa crise, por isso existe o trabalho do comitê de crise, por isso que existe gabinete de crise numa situação de desastre ou de calamidade né, porque esse corpo de profissionais especialistas precisam ordenar pra que isso aconteça posteriormente, porque aí, depois desses 3 meses, daí o psicólogo especialista vai ter que fazer o trabalho, com quem tá agudamente enlutado, com quem tá aumentando os seus sintomas, porque daí eles deixam de ser reações esperadas e passam a ser sintomas. Quando que a gente consegue avaliar isso? É como todo o tipo de adoecimento mental né, dependendo da frequência que aquelas reações estão vindo, a permanência delas né, e a incidência delas. Então se isso for aumentando gradativamente, essa pessoa está adoecendo, então ela vai precisar de uma ajuda especializada e não de um apoio psicossocial, que é o de intervenção em crise. ANA AUGUSTA: Uma coisa que ouvimos muito nas conversas com os especialistas foi “A gente precisa dar ao desastre a resposta que o desastre precisa, e não a resposta que a gente tá disponível pra dar.” E como cada desastre tem características únicas, o apoio oferecido nem sempre é o mesmo. RAFAEL REVADAM: Maria Carolina da Silveira Moesch é psicóloga e coordena o curso de psicologia da Universidade Comunitária da Região de Chapecó, a Unochapecó. Ela atuou no comitê que gerenciou a resposta ao acidente aéreo da Chapecoense.  MARIA CAROLINA: Então qual que era a nossa intenção, era saber se estavam se alimentando né, se precisavam de alguma coisa, levar informação adequada, né, e se, e levantar informação, porque esse era um pedido do clube, de que se essas pessoas estavam com alguém, se tinha alguém com eles né, se de alguma forma existia uma rede de apoio, então assim, o primeiro dia foi isso né, a gente saber como, aonde estavam e como estavam todos esses familiares, né. E aí a gente, a partir disso, segundo como as informações elas iam, a cada momento mudando muito rapidamente, mudava também a função desse grupo. Depois a gente começou a organizar a quantidade de voluntários que chegavam né, e aí ia cadastrar isso pra poder ter tanto ahn visitas domiciliares se necessário né, se houvesse pedido, como atendimento ali no clube,  porque as pessoas vinham pro clube. RAFAEL REVADAM: A Carolina contou pra gente como funcionou o apoio psicossocial aos familiares das vítimas. MARIA CAROLINA: No segundo dia né, a demanda era ahn precisamos preparar essas famílias pra indicar alguém para a questão do reconhecimento dos corpos. Logo em seguida, assim, questão de 3, 4 horas depois que a gente tinha iniciado, essa atividade, aí veio a informação de que a equipe médica que primeiro chegou lá, que que era daqui do clube, conseguiu fazer a identificação, porque os corpos estavam com os documentos, ou no bolso, ou perto né,, então no primeiro momento a necessidade de preparar né, aquela família, era muito ainda no sentido de informação e de acolhimento, sem nenhuma intervenção específica da psicologia. E aí né, conforme os dias iam se seguindo, depois dessa questão do reconhecimento dos corpos era a organização prática né, tinha cachorro que precisava ah… de um espaço pra ficar, de uma pet, alguma coisa, pra família poder se organizar. As mulheres, muitas não tinham conta conjunta, e aí logo né, quando dá a questão do óbito, na hora é bloqueada as contas, então essas mulheres estavam sem dinheiro né, sem dinheiro pra muita coisa assim, porque tava habituada a usar o cartão só né, e como não tinha conta conjunta, quando bloqueou a conta elas não tinham mais recurso financeiro. ANA AUGUSTA: O time da Chapecoense saiu de Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, e estava a caminho de Medellín, na Colômbia, onde jogaria uma das partidas da final da Copa Sul-Americana de 2016 contra o Atlético Nacional de Medellín.  RAFAEL REVADAM: Além dos jogadores, o avião também levava membros da comissão técnica e jornalistas. A aeronave caiu enquanto o piloto tentava um pouso de emergência após uma pane por falta de combustível. 71 pessoas morreram e 6 sobreviveram. ANA AUGUSTA: Já o incêndio da Kiss, em Santa Maria, foi causado por um sinalizador aceso dentro da boate, durante o show da banda Gurizada Fandangueira. Naquele dia acontecia a festa “Agromerados”, organizada por alunos dos cursos de Pedagogia, Agronomia, Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade Federal de Santa Maria. Como é de se esperar em uma festa universitária, a maioria do público era de jovens.  RAFAEL REVADAM: As faíscas do sinalizador atingiram o teto e incendiaram a espuma de isolamento acústico, liberando uma fumaça tóxica, que em poucos minutos tomou conta da boate. O lugar estava lotado, não possuía ventilação, saídas de emergência suficientes e nem brigada de incêndio. Além disso, os seguranças impediram muitas pessoas de saírem, pois pensaram que elas queriam ir embora sem pagar. O incêndio resultou em 680 pessoas feridas e 242 mortes. ANA AUGUSTA: Nessa tragédia, o apoio psicossocial foi dedicado principalmente a amparar os pais e familiares no reconhecimento e traslado dos corpos, que foram levados para o ginásio do Centro Desportivo Municipal da cidade, o CDM. A equipe também auxiliou na organização dos velórios. RAFAEL REVADAM: E ao mesmo tempo em que causam enorme comoção, eventos como esses geram muita curiosidade, principalmente hoje em dia, onde a informação circula muito rápido por causa da internet e das redes sociais. Mas existem atitudes que, além de serem invasivas e demonstrarem uma falta de empatia com a dor do outro, acabam atrapalhando o trabalho de amparo dos afetados. A Melissa Couto contou sobre uma situação dessas. MELISSA COUTO: Uma pessoa entrou dizendo que era psicóloga, foi até ahn, o ginásio do CDM, tirou fotos e botou na internet. E aí se formou um outro caos, porque daí, como era quase todas as forças armadas lá, os únicos civis eram os profissionais de saúde, eles foram barrados pra entrar, eu era a única civil que podia circular, né, de psicóloga por ali. Então isso foi muito difícil porque eu tinha que preparar pessoas pra acolherem pessoas, e pra poderem auxiliar no reconhecimento dos corpos, eu não podia levar esses profissionais, esses seres humanos, pra entenderem o que tinha lá dentro e o que eles iam enfrentar, se eles ti teriam condições emocionais de acompanhar, né, um pai, uma mãe, um irmão no reconhecimento dos corpos NATALIA OLIVEIRA: Quando a gente vai ao supermercado, a gente não encontra mais essas pessoas, no ponto de ônibus, nas igrejas que a gente frequenta, nunca mais a gente vai ver e o pior de tudo é a gente conviver com as famílias dessas pessoas porque em cada rua, em cada bairro, nas escolas, em todos o lugares eles fazem falta porque eu não vejo mais a Juliana, mas eu vejo o seu Geraldo que é pai dela e a dona Ambrosina que é a mãe, eu vejo as irmãs, os irmãos, vejo os filhos que ela deixou… Então, assim, isso é muito… muito difícil e principalmente a gente não mede dor porque a dor maior é a minha porque eu não sei sentir a sua dor.  ANA AUGUSTA: Pra quem fica, é difícil lidar com a ausência daqueles que não serão mais vistos. Toda perda gera um luto. E o luto não é um processo com início, meio e fim, cada um vive de uma maneira, e no seu tempo. LETIERE FLORES: O luto é um processo de fases que têm a negação, a revolta, a barganha, a retomada da vida e a aceitação. Porém, a pessoa enlutada não necessariamente vai passar por todas essas fases. Cada indivíduo elabora o luto de uma forma singular. Mas também não podemos negar, né, de que a razão da morte pode ser um fator que potencialize os sintomas do luto, principalmente nesse caso né, se tratando de morte inesperada e coletiva. RAFAEL REVADAM: Essa é a Letiere Flores, psicóloga formada pela Universidade Luterana do Brasil. Amiga de vítimas da Kiss, ela foi convidada para ir à boate no dia da tragédia, mas não foi. ANA AUGUSTA: A Letiere desenvolveu seu trabalho de conclusão de curso sobre os psicodiagnósticos dos sobreviventes da Kiss. Ela teve acesso aos prontuários de pessoas que foram atendidas no serviço Acolhe Saúde, criado pela prefeitura de Santa Maria para oferecer apoio psicológico após a tragédia. LETIERE FLORES: Eu consultei 148 prontuários às cegas, e os CID que eu mais encontrei foi transtorno de estresse pós traumático, depressão misto ansioso e depressão. ANA AUGUSTA: CID é a classificação internacional de doenças… LETIERE FLORES: Também encontrei 35 tipos de sintomas, os quais mais apareceram foram alteração de sono, ansiedade e medo. E também 8 hipóteses diagnósticas. O que mais teve em evidência foi transtorno de estresse agudo. Então, para chegarmos a essa conclusão de resultados dos psicodiagnósticos, foi relacionado o CID mais as hipóteses diagnósticas com base nos sintomas apresentados por eles, totalizando 19 psicodiagnósticos possíveis. E o que mais esteve em evidência novamente foi  transtorno de estresse pós traumático, o transtorno está relacionado a vivenciar diretamente o evento traumático, testemunhar pessoalmente o ocorrido com outras pessoas, saber que ocorreu com familiar ou amigo próximo, ser exposto de forma repentina ou extrema a detalhes aversivos do evento. Então, os dados encontrados puderam auxiliar na compreensão de que eventos críticos podem gerar impactos sim em pessoas afetadas por esse tipo de evento. RAFAEL REVADAM: Esses resultados da pesquisa da Letiere mostram que o impacto das grandes tragédias na saúde mental tem consequências a longo prazo, algo que pode durar meses ou anos após o evento. Por isso, o acompanhamento psicológico deve ser contínuo e duradouro.   ANA AUGUSTA: O serviço Acolhe Saúde foi ampliado e agora se chama Acolhe Santa Maria, e segue oferecendo atendimento psicológico para familiares de vítimas e sobreviventes do incêndio da Kiss. Já no acidente da Chapecoense, como a maioria das famílias não era da cidade, a equipe do apoio psicossocial direcionou o atendimento dessas pessoas para suas cidades de origem.  RAFAEL REVADAM: E em Brumadinho, pais, filhos e cônjuges das vítimas têm direito a consultas com psicólogos e psiquiatras. O serviço é oferecido pela Vale, empresa responsável pela barragem que rompeu. ANA AUGUSTA: Essas tragédias foram consideradas crimes, mas seus processos continuam em aberto. A lentidão da justiça traz uma sensação de impunidade, o que pesa ainda mais na saúde mental dos envolvidos, como nos explicou a psicóloga Melissa Couto.  MELISSA COUTO: O processo de luto, ele tem um trâmite de que algumas coisas elas precisam acontecer pra que ele seja elaborado seguindo os seus processos elaborativos mesmo né, do tempo, das reações. Não haver uma responsabilização por algo que foi tão sério e tão grave, sem sombra de dúvidas afeta diretamente a saúde mental das famílias, dos sobreviventes, e de todos nós que vivemos isso juntos. Então assim, a responsabilização não diminuiria a dor de ninguém porque o  que foi perdido,as pessoas que foram perdidas, elas não voltam, né, isso é irreparável, mas de alguma forma, quando existem pessoas que respondem por aquele dano causado a alguém, isso de alguma forma traz um pouco mais de serenidade, de de paz pras pessoas, porque de alguma forma é como se aquilo fosse realmente reconhecido né, como algo que foi grave, como algo que foi severo e irreversível. RAFAEL REVADAM: Para tentar agilizar os processos e não deixar os crimes impunes, os familiares e amigos das vítimas das diferentes tragédias se juntaram e criaram associações e grupos de apoio. Em Brumadinho, foi criada a AVABRUM, Associação dos familiares de vítimas e atingidos pelo rompimento da barragem Mina Córrego do Feijão. A Natália faz parte dessa associação e contou um pouco sobre o trabalho deles. NATALIA OLIVEIRA: Antes de ter essa associação, criou-se a Comissão dos Não Encontrados, onde a gente conseguia reunir diretamente toda semana com os bombeiros, com o IML, a polícia civil pra atualização de listas, pra dar informações sobre os encontros né… E isso vem até hoje, estamos aqui né… Esse grupo foi maior, as pessoas foram encontrando seus familiares e foram saindo né.. pelo processo natural de cada um viver suas etapas do luto. A Associação, ela tenta o tempo todo, a gente tenta cobrar por justiça, nós estamos acompanhando todos os processos, né. Que na verdade a sensação que a gente tem hoje é de muita impunidade durante os dois anos, porque não tem ninguém na cadeia. A gente sabe que é uma coisa que vai levar tempo, mas a gente tenta manter essa bandeira da justiça. Da prisão dos responsáveis porque o principal motivo da gente ter montado essa associação foi pra gente tentar de alguma maneira honrar a morte dos que foram, porque estatisticamente eles são só números, oficialmente são 270, a gente fala.. nós consideramos 272 porque havia duas grávidas, mas a gente tenta fazer um  marco pra que essas mortes não tenham sido em vão.  ANA AUGUSTA: Entre as conquistas da associação está o plano de saúde para os pais das vítimas. Eles continuam lutando para que os irmãos também tenham este direito.  RAFAEL REVADAM: Também existem associações relacionadas às tragédias da Chapecoense e da Kiss. Em Santa Maria, há ainda um grupo criado por amigos das vítimas, o Kiss: que não se repita, que começou nas redes sociais.  ANDRÉ POLGA: Eu perdi duas amigas né, na tragédia, na verdade uma colega e uma amiga. Uma amiga de infância que não morava aqui em Santa Maria na época, e uma colega de faculdade que cursava jornalismo, mas como os cursos eram similares a gente era colega em algumas disciplinas. É… como a mãe da minha amiga não morava aqui em Santa Maria, ahn… durante o acontecido, ela veio a se mudar mais ou menos um ano depois, a minha forma de tentar representar a família, de uma forma ou de outra, a família dela era estar junto dos familiares. RAFAEL REVADAM: André Polga criou uma página no Facebook e um perfil no Instagram para dar voz aos familiares das vítimas e não deixar que a tragédia caia no esquecimento.  ANDRÉ POLGA: E quando eu acompanhei essas pessoas durante o ano de 2013, naquela busca por respostas, ahn… naquela centena de manifestos que teve naquela época que foi a ocupação da câmara de vereadores, foi os atos que tiveram na frente da prefeitura e em outros locais da cidade na soltura dos réus é… eu via que quando a mídia local divulgava alguma coisa sobre sobre essa luta, eh, as pessoas, não que ainda não seja recorrente mas naquela época era mais, eh jogavam n comentários de forma negativa dizendo que, o mesmo que ainda dizem, que tinha que deixar os mortos descansar, que os familiares eram contra o desenvolvimento da cidade, que não adiantava mais, que que as vítimas já tavam podres debaixo da terra, que não adiantava gritar, que lugar de de mãe era em casa chorando, e eu, refletindo sobre tudo isso, pensei o que que a mídia tá fazendo que não tá conseguindo mostrar o real o real lado dessas pessoas, o real lado da luta dessas famílias. Então a, a página surge a partir daí, ela é uma rede de apoio que surge dentro do Facebook, depois a gente ingressou no Instagram, pra tentar mostrar o outro lado dessas pessoas, de uma forma diferente, uma forma, o lado de dentro na verdade né, o que a mídia não mostra. Então a rede ela surge a partir dessa necessidade de mostrar a luta dessas pessoas, de mostrar a realidade dessas pessoas, de um outro lado, pra sociedade conseguir entender né, o porque essas pessoas tavam fazendo esses atos. NATALIA OLIVEIRA: A gente descobre que quando a gente não tem outra saída, quando você não tem outra opção, o único caminho que eu tenho é ser forte. Porque eu vou parar de lutar e vou pôr a minha mãe pra ir pra uma reunião? Eu vou pôr minha mãe pra ir pro IML, pra ver restos mortais das pessoas? Pra discutir, pra ver o que que pode fazer, para agilizar todos os processos? Eu vou pôr meus filhos, eu vou pôr os filhos da minha irmã, vou pôr meus irmãos? Então assim, é uma estrada que eu tô percorrendo, claro que é por escolha, mas também porque eu acho que minha irmã era uma pessoa muito especial, que tinha muita empatia com as pessoas, carinhosa, simpática, solidária, e tem hora que eu penso num propósito maior e, talvez, eu esteja sendo usada, e talvez ela não tenha sido encontrada porque precisa de ter pessoas que consigam fazer essa luta. Eu tenho certeza que os últimos momentos da minha irmã, ela não preocupou em correr e salvar. Se ela teve algum tempo, ela preocupou em salvar o próximo. Porque isso era característica dela. Eu, se tivesse lá, eu ia correr, não ia nem olhar pra trás, agora, a Lecilda, eu tenho certeza que ela ia olhar para as pessoas e ia tentar proteger todo mundo. ANA AUGUSTA: Mas e quem cuida de quem cuida? Como fica a saúde mental dos profissionais que oferecem apoio psicológico nesse cenário de desastres? Melissa Couto falou que essas pessoas também precisam de apoio. MELISSA COUTO: Existem duas coisas primordiais né, pra gente exe-exercer o autocuidado, a primeira é fortalecer a rede de apoio. Então assim, se tu não tiver uma família que te ampare, que te apoie, que te acompanhe, que te dê suporte, é praticamente impossível tu realizar esse tipo de trabalho. E se tu não cuidar da tua saúde mental no sentido de saber que a gente só pode cuidar do outro se a gente cuida da gente primeiro também, então assim, existem coisas essenciais e primordiais né que é um psicólogo, manter em dia a sua psicoterapia, saber que é um ser humano também, porque é muito fácil se adoecer. A gente fala que tem uma frase que diz assim “Reconhecer e não negar”, ela serve pra gente também, reconhecer o que a gente está vivendo, o que a gente está atendendo, e não negar o tamanho que isso tem. Nenhum de nós é super-herói, não somos anjos de Deus que viemos pra cá, somos pessoas. ANA AUGUSTA: Mas apesar de todo sofrimento e tristeza, ela diz que o trabalho é recompensador. MELISSA COUTO: E eu costumo dizer que as pessoas acham que quem presta um trabalho como o que eu presto, ganha, as pessoas ganham com o meu trabalho, e na realidade é exatamente o inverso né, eu ganho com isso porque, tu pensa, na pior, no pior momento da vida de uma pessoa, no pior sofrimento dela, ela abre a porta da da vida dela, da casa dela, e te permite que tu possa acolher a pior dor que ela está vivendo. Isso é de uma grandiosidade, de uma magnitude, que só quem pode viver isso junto com essas pessoas é que entende o quanto ganha, o quanto aprende, o quanto ressignifica as suas próprias dores, os seus próprios temores. Quando tu ouve desses pais “Eu não tô lutando pelo meu filho, porque o meu filho já se foi. Eu tô lutando pra que o teu não tenha que passar po isso.” Então ó, já me emocionei viu… Então… Tem um autor que fala de luto, o Colin Parkes, ele tem uma frase que eu uso sempre nas minhas palestras que diz assim, a dor é do tamanho do amor que a gente sente, só não é capaz de sentir dor quem não é capaz de amar, portanto, todos sentimos né… humanamente impossível não sentir. Então as mães disseram muito que quando eu disse isso pra elas fez todo o significado, que aquilo que, tava doendo tanto só podia doer porque era do tamanho do amor que elas tinham, então que elas tinham todo direito de sentir, porque era o tamanho do amor delas.  RAFAEL REVADAM: Esse foi o quinto episódio do Casa de Orates. Ele foi apresentado por mim, Rafael Revadam, e pela Ana Augusta Xavier. Nós também participamos da produção, junto com a Roberta Bueno.  ANA AUGUSTA: As músicas usadas neste programa são da YouTube Audio Library. A revisão do roteiro e a coordenação são da professora Simone Pallone, do Labjor/Unicamp, e os trabalhos técnicos de Rafael Revadam e Octávio Augusto.  RAFAEL REVADAM: E se você quiser saber mais sobre o trabalho das associações e dos grupos de apoio citados neste programa, vamos deixar os links na descrição.  ANA AUGUSTA: Assim como as famílias afetadas pelas tragédias tratadas neste episódio, muitas outras também estão vivenciando o processo de luto por causa de perdas decorrentes da pandemia. Aqui no Oxigênio falamos sobre isso no episódio 99, Memórias traumáticas e no episódio número 100, Despedidas, da Série Quarentena.  RAFAEL REVADAM: A nossa série, Casa de Orates, também tratou desse tema, no episódio sobre saúde mental na pandemia. É o programa 121 do Oxigênio, Alerta de tsunami. Os links de todos esses episódios também estão na descrição. ANA AUGUSTA: Você também pode nos acompanhar nas redes sociais. Estamos no Facebook, (facebook.com/oxigenionoticias – tudo junto e sem acento). E no Instagram e no Twitter, basta procurar por “Oxigênio Podcast”. RAFAEL REVADAM: E não esqueça de deixar a sua opinião sobre este episódio comentando na plataforma de streaming que você usa. Até a próxima! __________________________________ Os episódios do Oxigênio citados no programa são: #99 – Temático Memórias: Episódio 2 – O Trauma https://oxigenio.comciencia.br/99-tematico-memorias-episodio-2-o-trauma/ # 100 – Quarentena ep. 5 – Despedidas https://oxigenio.comciencia.br/100-quarentena-ep-5-despedidas/ #121 – Série Casa de Orates – ep. 4 – Alerta de tsunami https://oxigenio.comciencia.br/121-serie-casa-de-orates-ep-4-alerta-de-tsunami/
15 minutes | Mar 11, 2021
#125 – Tá em alta – ep. 2: Tecnologia
A série Tá em Alta aborda assuntos ligados à inovação, tecnologia e empreendedorismo, e nesse segundo episódio fala sobre tecnologia. E sobre isso, a Thais Oliveira fez uma retrospectiva histórica, na verdade pré-histórica, pra falar da origem da tecnologia. Quem vai ajudá-la a tratar do tema, mais especificamente sobre a relação entre a tecnologia e seu impacto na vida das pessoas, é a Daniela Osvald Ramos, professora e pesquisadora do departamento de comunicações e artes da ECA-USP. Ouça o novo episódio e acompanhe toda a série por aqui ou pela plataforma de  podcast de sua preferência. ____________________________ Roteiro Thais Oliveira: Olá, pessoal. Sejam bem-vindas e bem-vindos ao segundo episódio do podcast Tá em Alta. Meu nome é Thais Oliveira e nesse podcast, nós pretendemos tratar de assuntos relacionados à inovação, tecnologia e empreendedorismo de uma forma simples e explicativa. O nosso objetivo é falar sobre assuntos que tão muito em alta e são muito debatidos em escolas, universidades e até na tevê, mas muitas vezes são tratados de uma forma superficial. A nossa ideia é pegar esses assuntos e discutir, na prática o que eles significam. No nosso segundo episódio, nós vamos falar sobre tecnologia. Tecnologia é uma palavra que tá em alta atualmente, mas que na verdade nunca saiu de cena.  E por isso nesse episódio, eu vou comentar não só sobre como as tecnologias mudaram o mundo, mas também comentar sobre as suas aplicações na sociedade e falar um pouco também sobre as suas relações com a ciência. Pra começar o assunto, eu trouxe a origem da palavra tecnologia. Ela vem do grego, techné, um verbo que significa fabricar, produzir, ou construir que se une ao sufixo logia que também vem do grego logus, que quer dizer razão. Então, tecnologia significa a razão do saber fazer. Não é novidade que a tecnologia está em todo nosso redor, e ela está presente desde a idade da pedra, moldando as relações sociais, econômicas e até políticas do homem. Para nós conhecermos um pouco sobre esse desenvolvimento tecnológico, eu convido vocês para fazermos uma viagem no tempo. Nosso ponto de partida são os períodos paleolítico e neolítico, que duraram de cerca de 2,7 milhões de anos até 4.000 anos atrás. Nessa época a tecnologia tinha somente o objetivo de atender somente as necessidades do homem nômade. E esse homem nômade, ele não usava a tecnologia com base em pesquisa ou conhecimentos científicos, como a gente pode imaginar, né? Mas ele usava a partir experiências do dia a dia. E aí, ele criava lanças, machados, coisas para ele subsistir. Quando o homem se fixou na terra, ele passou a desenvolver outras ferramentas, como o arado e a roda. E a roda pode ser considerada também uma inovação. Se você quiser saber quando uma tecnologia, um equipamento, enfim é de fato uma inovação, você pode conferir o primeiro episódio da série Tá em Alta que fala sobre inovações.  Dado o recado, vamos seguindo aqui na nossa viagem no tempo. O próximo período que a tecnologia se firmou foi na idade média, já no regime do feudalismo, que era um regime rural que se baseava na forte obrigação entre servos e senhores feudais. A tecnologia nessa época esteve presente dentro dos feudos através dos artesanatos e o desenvolvimento tecnológico que aconteceu nessa época foi a partir dos teares manuais e das máquinas de costura. Só que como a gente sabe pelos registros históricos, o sistema feudal começou a fracassar e, assim, essa atividade artesanal que era realizada dentro dos feudos migrou para as cidades, e é dentro das cidades que a tecnologia começa a ter um objetivo diferente. Isso porque ela começa a ser mais atrelada a relações sociais e econômicas. Tudo isso se tornou mais forte lá por volta de 1650 quando doutrinas como iluminismo, absolutismo e mercantilismo resultaram na primeira revolução industrial. E esse é um grande marco para a tecnologia porque foi na revolução que ela viveu seu grande salto, o trabalho artesanal que começou lá nos feudos e depois migrou para as cidades foi totalmente substituído pelo uso das máquinas nas grandes empresas. E toda essa mecanização só foi possível porque a tecnologia proporcionou a mudança do uso da energia hidráulica, que era obtida a partir da água, pro uso da energia que movimentava as máquinas a partir do vapor, que usava o carvão como matéria prima. A mecanização, provocada pela tecnologia, não só mudou o tipo de… o tipo de energia que se usava na época, mas também causou uma maior produtividade para as indústrias e grande avanço do desenvolvimento científico e tecnológico. E essa revolução marca o tempo em que a tecnologia realmente se torna parte do sistema capitalista, isso porque esse sistema percebeu que as tecnologias emergentes tinham capacidade de proporcionar soluções para se produzir e vender mais. Até aqui eu falei como a tecnologia foi importante desde a idade da pedra, depois nos feudos como ela foi usada no artesanato, e aí esse impacto que a tecnologia tem quando ela realmente se encontra com o capitalismo.  Mas, assim como tudo eu tenho que ser um pouco crítica sobre essa análise social da tecnologia. A revolução de fato trouxe consigo um grande progresso técnico e econômico, mas nós não podemos esquecer que ela também trouxe um impacto social negativo para as pessoas. Isso porque nós sabemos que elas trabalhavam em condições insalubres e em longas jornadas de trabalho. Como vimos até aqui que não é possível falar de tecnologia sem analisar todo esse contexto social, eu convidei e professora e pesquisadora do departamento de comunicações e artes da ECA-USP, Daniela Osvald Ramos, para comentar sobre essa relação entre a tecnologia e o impacto tanto daqueles que a produzem quanto daqueles usufruem da tecnologia. Daniela: A relação entre tecnologia, o impacto de quem produz ou usufrui dela, a gente pode entender isso a partir das referências culturais daquela determinada população que tá em contato, né, com o avanço da tecnologia, os impactos que ela causa, então nesse grupo social. A gente vive num país com a desigualdade social. Pode ser então que um dos impactos da tecnologia nesse país seja aprofundar ainda mais a desigualdade social porque culturalmente as referências sociais que se tem são essas. A tecnologia sozinha não causa, não impacta nada. Ela impacta a partir de usos que se faz dela, a partir dos hábitos e dessa referência história, e cultural, política, econômica, social.  Thais: Voltando à nossa viagem no tempo, vamos ao século 20, quando a ciência e a tecnologia se aproximam mais do que nunca. A ciência como forma de se explicar o que se há na natureza se uniu à tecnologia, que como vimos é a aplicação das técnicas, e ferramentas de forma prática. Durante esse século, o sistema capitalista está mais desenvolvido e a tecnologia deixou de ser apenas um fator de produção, ou seja, uma ferramenta para o aumento da produtividade e do acúmulo de capital. Durante esse século, as empresas começaram a investir mais no setor de pesquisa e desenvolvimento e como resultado disso os cientistas que trabalhavam nas empresas começaram a ser homenageados até com o Prêmio Nobel. Um desses cientistas foi o físico-químico Irving Langmuir. Ele trabalhava na General Electric com lâmpadas incandescentes e foi homenageado com o Prêmio Nobel de química em 1932 a partir de suas descobertas no campo.  Um pouco mais tarde, com um olhar mais apurado agora para a ciência, após a segunda guerra mundial, os países industrializados começaram a investir em projetos gigantes de ciência de ponta. Como aceleradores de partículas, no estilo do Sirius, o nosso brasileiro recém inaugurado, e o projeto de mapeamento do genoma do DNA, realizado de forma colaborativa com cientistas de vários países. Essa época foi tão marcante que recebeu o nome de Big Science, a grande ciência. Mas, voltando pra área da tecnologia, e longe dos países desenvolvidos, na década de 70 surge um novo conceito para abranger as tecnologias não convencionais, que são aquelas que tem foco em resolver problemas sociais e ambientais. Enquanto as tecnologias convencionas são aquelas que nós comentamos que tem objetivo desenvolver um produto visando lucro, por exemplo. Mais tarde essa tecnologia foi chamada de tecnologia social, de acordo com o ITS Brasil, o instituto de tecnologia social, esse tipo de tecnologia é aquela desenvolvida ou aplicada como solução para melhoria na condição de vida e inclusão social. Apesar de ela levar o nome social, a ideia é que essa tecnologia possa apresentar soluções não só para comunidades carentes e pobres, mas também propor usos mais sustentáveis e compartilháveis para qualquer camada da sociedade.  A primeira tecnologia considerada social foi a roca de fiar, instituída pelo líder indiano Mahatma Gandhi. Isso porque na década de 20, quando a Índia ainda era dominada pela Grã-Bretanha, Gandhi usou a roca como um instrumento de valorização dos costumes tradicionais e de inclusão social dos indianos. Ela é considerada a primeira tecnologia apropriada no mundo com um objetivo de desenvolvimento social. Se a gente for falar de exemplos nacionais, uma prática disseminada por todo o país são as cisternas comunitárias. Elas são muito úteis em locais que se chove pouco, e onde se faz necessário o estoque de água. Então, ONGs, redes de apoio, e comunidades implantam essa tecnologia, captando água da chuva que se acumula nos telhados das casas e criam um sistema de distribuição para toda a comunidade. E é muito interessante que as pessoas não se beneficiam somente do produto dessa tecnologia, mas elas fazem parte da construção da cisterna, elas querem acompanhar o funcionamento dela, e elas também acabam desenvolvendo as relações sociais entre os membros das comunidades. E nesse contexto, eu gostaria de perguntar para a professora Daniela: professora, como você vê a importância das tecnologias sociais em suprir as demandas de regiões precárias? Pelos exemplos que nós vimos aqui, do Gandhi e dessa relação colaborativa das cisternas, você acha que elas também são instrumentos de educação? Daniela: Sim, eu acho que a tecnologia social, ela pode atuar como um instrumento de educação. É, e até a gente pode pensar na engenharia reversa da tecnologia social que é aprender sobre as necessidades daquela comunidade para conseguir desenvolver, implementar, prototipar, testar determinada tecnologia social, né? Então, e introduzir essa nova tecnologia social nessa comunidade. O que é uma maneira de educar também, então eu acho que educação, ela se relaciona com tecnologia social desde o ponto de vista da implementação dela em entender pra quê que ela serve a partir de quem a estará usando e também a partir do momento em que ela é utilizada como implementá-la em conjunto,  como é que ela vai ser adotada por essa comunidade em questão.  Dando um salto para o agora, em qual momento tecnológico nos encontramos? Desde a década de 1990, vivemos a fase da ética ou da sustentabilidade. Ela é marcada por um questionamento do uso da tecnologia com o foco na acumulação de capital e nas consequências desse sistema para o meio ambiente. É nessa fase que surgem as ideias em como conciliar o crescimento econômico com a preservação da natureza, e isso resultou no chamado desenvolvimento sustentável. Com o objetivo de provocar mudanças mundiais, os governos promoveram eventos como a Conferência Rio 92, um encontro das Nações Unidas em que os países começaram a discutir sobre como eles enfrentariam os problemas causados pelas emissões dos gases do efeito estufa. Esse encontro é uma retomada de um primeiro evento que aconteceu em Estocolmo, em 1972 e foi ele foi inclusive um combustível para o surgimento das tecnologias sociais que eu comentei há pouco. Apesar das diversas convenções, os países ainda não conseguiram diminuir de fato as emissões desses gases e impedir, por exemplo, a extinção de espécies de animais. Professora Daniela, na situação em que o planeta se encontra, existe alguma tecnologia realmente limpa e se sim, é possível usá-la de forma sustentável para reverter as consequências de séculos de incentivo ao consumo e produção sem limites? Daniela: Sobre o uso de tecnologias limpas, eu acho que isso vai depender de um design sustentável pra essa tecnologia, né? Então, seria uma produção em conjunto com a área do design, porque pensar uma tecnologia é de certa forma desenhar o uso, ter de antemão uma visão sobre o impacto e como minimizar se pode ser negativo ou não e, de novo, em que cultura ela está inserida, em que tipo de sociedade essa tecnologia está inserida. Então, eu acho que é possível pensar se uma tecnologia é limpa se houver um design social pra isso.  Thais: Bom, nesse episódio nós fizemos uma viagem pelo tempo, olhamos o poder da tecnologia de impactar as relações sociais e mudar o mundo.  Compreendemos que ela não é guiada somente pelo avanço da ciência e do conhecimento, mas também por interesses sociais e econômicos. E apesar de esse fator econômico ter deixado de herança um mundo de produção sem limites, vimos que ainda é possível pensar em tecnologias e sistemas que sejam sustentáveis. Ah, e se você quiser saber mais sobre os assuntos tratados, você pode conferir os artigos que eu peguei como referência, anota aí: Tecnologia: Buscando uma Definição para o Conceito, de Verasto, da Silva, Miranda e Simon. Análise da Evolução da Tecnologia: Uma Contribuição para o Ensino da Ciência e Tecnologia, de Hayne e Wyse. E por último, The Objectives of Technology Policy, escrito por Keith Pavitt. Esse trabalho foi escrito, produzido e editado por mim, Thais Oliveira, e faz parte do Trabalho de Conclusão de Curso da Especialização de Jornalismo Científico do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp. E tem orientação da professora Simone Pallone. Eu espero que vocês tenham gostado de conhecer mais sobre esse lado social da tecnologia. Nos vemos no próximo episódio, um abraço e até mais!
36 minutes | Feb 25, 2021
#124 – Leitura de fôlego ep. 4: Utopia – o sonho que antecede o pesadelo?
A perfeição pode ser um problema. Utopia e distopia não são tão diferentes assim. Uma sociedade perfeita é um perfeito pesadelo. Essas afirmações (que podem parecer desconcertantes à primeira vista) são discutidas neste quarto – e último – episódio da série Leitura de Fôlego. Carlos Eduardo Ornelas Berriel tem se dedicado a estudar as utopias literárias há mais de 20 anos e, nesse episódio, ele conversa com a gente sobre esse assunto. Leitura de Fôlego é uma série sobre literatura para o Oxigênio. Quem está à frente desse projeto é a Laís Souza Toledo Pereira, com supervisão e edição de Simone Pallone e trabalhos técnicos de Gustavo Campos e de Octávio Augusto Fonseca. Quem ajuda na divulgação do podcast é a Helena Ansani Nogueira. _________________________________ Laís: Oi! Eu sou a Laís Toledo, e esse é o quarto e último episódio da “Leitura de fôlego”, uma série sobre Literatura no Oxigênio. Carlos Berriel: Uma sociedade perfeita são perfeitos pesadelos, porque ela elimina aquilo, a última coisa a ser eliminada do mundo, que é o indivíduo. Pode eliminar tudo, menos o indivíduo, porque, se você eliminar o indivíduo, aí já está tudo eliminado, não tem mais nada. Laís: Utopia. Essa palavra, inventada a partir do grego, quer dizer “não lugar”, “o que não está em lugar nenhum”. A gente fala de utopia normalmente pra se referir a um lugar ou a uma sociedade onde tudo é perfeito. Ou também para se referir a uma situação que tende a não se realizar, um sonho inalcançável. Então, por que será que uma sociedade perfeita seria um perfeito pesadelo? Por que ela eliminaria os indivíduos? Nesse episódio, a gente vai conversar sobre a utopia, que já nasce cheia de contradições e ambiguidades e que não é assim tão diferente da sua filha mais popular hoje em dia, a distopia. Quem conversa com a gente sobre esse assunto é o Carlos Eduardo Ornelas Berriel. Ele é professor e pesquisador do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL, da Unicamp. Faz mais de 20 anos que ele tem se dedicado ao tema das utopias literárias. Ele é fundador e editor da Revista Morus – Utopia e Renascimento e dirige o Centro de Estudos Utópicos da Unicamp, chamado U-TOPOS. O Berriel também é membro de várias sociedades científicas internacionais voltadas para o problema utópico e tem se dedicado à tradução, ao estudo e à publicação de utopias italianas.      Laís: A gente tem esse uso cotidiano da palavra utopia, de situação perfeita ou inalcançável, mas o Berriel me contou que, pra quem estuda esse tema, a utopia ainda está em definição. Berriel: A utopia é um campo de reflexão atual. Nunca se estudou tanto utopia como agora. Na verdade, a utopia começa a ser estudada só no século XX e é mais ou menos por etapas; assim, tem uma época em que se estuda e depois se larga. E, de uns trinta anos pra cá, é uma fase de grandes estudos sobre utopia. E muita produção, muito centro de pesquisa, publicações, traduções. Nunca se estudou tanto, o que é interessante. Laís: Apesar de os estudiosos desse campo estarem promovendo várias discussões para tentar definir a utopia, o Berriel, que é mais ligado à área da literatura, falou sobre a visão dele de utopia como um gênero literário, um tipo de texto.  Berriel: Eu vou dizer o que eu acho. Eu acho que utopia é um gênero literário, que tem determinadas características muito específicas. É um gênero literário que nasce com a sociedade moderna, a sociedade burguesa. E ela tem, enquanto, digamos assim, características de gênero, a utopia é muito próxima ou é mesmo uma sátira, é uma sátira política. Ao ser uma sátira, ela tem uma característica desse gênero, que é um gênero antigo, que se renova, que se refaz, como os gêneros literários vão se refazendo com o tempo, atendendo às demandas de cada época. A sátira tem por característica ser um gênero de períodos de grande fratura histórica, de grandes transformações sociais, como, por exemplo, a sátira; ela tem uma ligação direta com a crise da sociedade romana. Laís: A sátira como um tipo de texto surgiu na Roma Antiga, e o Lucílio, que nasceu por volta de 180 a.C., é considerado seu criador. A palavra satura tem a ver com um tipo de bandeja cheia – saturada – de frutas. O autor da sátira imitava outros gêneros: é como se ele misturasse em uma mesma obra (bandeja), vários gêneros literários (frutas) diferentes. Isso acontece porque, como disse o Berriel, o chão da sátira é uma crise social, uma rachadura na crosta histórica; é como se um mundo estivesse acabando e outro ainda estivesse nascendo. E, na beira desse abismo, o escritor ainda não podia inventar um gênero novo; então, ele imitava e misturava gêneros “mortos”, gêneros de um mundo que estava acabando.          Berriel: O satirista está na margem histórica nova, mas ele usa materiais literários da sociedade velha, ou da comunidade velha. Isso dá uma espécie de sabor de uma coisa irônica, uma coisa relativamente falsa, de um riso no canto da boca, que é o riso do cachorro, de onde vem o cinismo, de cinus, que é cachorro, e que é a sátira. Toda sátira tem um elemento de duplicidade, de um certo riso disfarçado. E eu acho que a Utopia, quando ela nasce, com o Thomas Morus, em 1516, quando é publicada (ela já vinha sendo escrita antes), ela é claramente uma sátira. Ela é uma sátira, no sentido de que é uma reflexão sobre a nova sociedade.  Laís: Quando o Berriel fala do nascimento da utopia, ele está se referindo a um livro chamado Utopia, escrito pelo Thomas Morus. Lembra que eu disse que a palavra “utopia” tinha sido inventada a partir do grego? Então, foi o Morus, que não era grego e sim inglês, que criou essa palavra. E ele não só criou a palavra, mas também criou a utopia enquanto esse tipo de texto literário, que descreve uma sociedade supostamente perfeita em todos os sentidos. Mas, assim, esse texto não simplesmente descreve essa sociedade – o que poderia acontecer em um tratado político, por exemplo –, ele faz isso por meio de uma ficção, de uma história inventada. Bom, mas vamos falar agora um pouco mais sobre esse livro, que já na sua época fez sucesso e serviu de modelo para as utopias que vieram depois. Então, como o Berriel estava falando, a Utopia do Morus seria uma espécie de sátira com uma reflexão sobre a nova sociedade que estava surgindo…  Berriel: Que nova sociedade é essa? 1516, navegações, descobertas, descoberta do Novo Mundo, desenvolvimento de uma nova economia, que é o capitalismo mercantil, uma nova classe social que começa a tomar conta da sociedade, que é a burguesia, mercantil, bancária. Então, o Thomas Morus é um homem que se situa, um intelectual, um escritor, que se situa bem dentro desse novo mundo. As descobertas, as navegações, uma nova economia, o surgimento do Estado moderno. Estado moderno no caso da Inglaterra, mas em outros países também. E o Thomas Morus está dentro desse quadro de grande convulsão social. Ao mesmo tempo em que ele é uma pessoa, portanto, que absorve os novos elementos históricos que estão chegando pra ele, assim como uma avalanche (você imagina viver naquela época). E ao mesmo tempo ele tem o olhar conservador, na medida em que ele lamenta intrinsecamente o desaparecimento de certos elementos da sociedade feudal, da comunidade feudal, que é justamente a comunidade.  Laís: E o que seria essa comunidade que estava desaparecendo? Berriel: A comunidade, então, é uma forma de vida coletiva que não é regida pelo dinheiro, mas é regida por uma tradição.  Laís: O que é diferente da sociedade burguesa que estava nascendo naquela época; nela, as relações entre as pessoas eram mais utilitaristas, mais focadas nos indivíduos, o que, por um lado, é bom, porque a pessoa passa a ter liberdade pra buscar outros vínculos, mais baseados no interesse dela do que em uma tradição. Mas, por outro lado, essa mudança gerava um problema central dentro da Utopia, que é o descarte, o abandono, da população…   Berriel: Porque a comunidade, embora ela seja dura, áspera, cruel, tenha os dominadores e os dominados, dentro da comunidade todo mundo tem o seu lugar. É uma estrutura bastante hierárquica e todo mundo tem um lugar dentro dessa comunidade. Se você for refletir mais detidamente, aquilo que o cristianismo imagina que seja o céu é a sociedade feudal, a comunidade feudal. Tem uma hierarquia onde existem os nobres, os cavaleiros, Deus acima de tudo, e vem descendo em uma hierarquia muito cuidadosa até chegar ao homem comum, até chegar ao mais humilde dos servos, que é um valor para a igreja, a servidão, todo cristão tem que se declarar servo como se fosse uma grande coisa.  Laís: Então a comunidade feudal estava desaparecendo na época em que o Morus escreveu a Utopia. E, no caso da Inglaterra, onde ele morava, esse desaparecimento era muito acelerado pelo surgimento das manufaturas de tecido. Berriel: O campo antes era dividido em lotes, em que os camponeses podiam, longamente, por gerações, trabalhar e tirar o seu rendimento, tirar a sua subsistência, e tudo isso vai desaparecendo pra transformar a Inglaterra em enormes pastagens de ovelha pra atender à demanda de lã das cidades manufatureiras. Esse processo, que é o processo de desenvolvimento do capitalismo na Inglaterra, destrói a comunidade, que era aquilo que era a própria forma do poder da igreja católica. É um mundo novo. Então, o Thomas Morus é um homem do mundo novo, mas que lamenta o desaparecimento da estrutura fundamental feudal, porque a igreja católica, não é que ela existiu ou foi forte na Idade Média, a igreja católica é a Idade Média. Eu estou exagerando, mas é com um sentido didático; toda a estrutura, toda a visão de mundo, o modo como a igreja católica vê as coisas é a comunidade feudal. E ela está desaparecendo. Laís: Com o desenvolvimento do capitalismo, a igreja católica não iria se sustentar se ficasse do mesmo jeito. Isso porque, como disse o Berriel, ela era uma tradução das relações feudais; enquanto o protestantismo ia passar a ser a expressão religiosa da burguesia. Bom, então o Morus – que inclusive foi canonizado, virou santo – mesmo que criticasse os problemas da igreja, como a corrupção e a ociosidade de alguns religiosos, ele estava preocupado com o fim do feudalismo no país dele, porque os camponeses estavam sendo expulsos do campo, eles estavam perdendo o lugar (ainda que injusto) que eles ocupavam antes. Com isso, acontecia um aumento da pobreza e da criminalidade; muitas pessoas eram condenadas à morte por cometerem crimes como roubo. Essa é a questão do descarte da população, que é central na Utopia.  Berriel: Então, na minha leitura, o Thomas Morus escreveu a Utopia pra discutir esse fato. É um livro extremamente contraditório. É próprio das utopias essa contradição, porque ela tem elementos muito novos. Essa reinvenção da sátira que o Morus faz na Utopia é um grande movimento literário, porque é uma apropriação dos antigos, mas com chave nova. E, além de ser uma chave nova, é um elemento interessante, porque a sátira, perdão, a Utopia, como uma sátira nova, surge praticamente de modo contemporâneo ao surgimento do romance. O romance é também um gênero burguês. Só que o romance é um gênero burguês que não lamenta a perda do passado, não necessariamente lamenta. A Utopia lamenta. A Utopia é muito contraditória.  Laís: Então, enquanto gênero literário, a utopia seria justamente essa captura de um momento de grande transição da sociedade e também de mudança das formas literárias. Mas não é só isso… Berriel: Agora, a utopia é a percepção de um desenvolvimento histórico, uma reflexão sobre um desenvolvimento histórico, e que projeta uma sociedade inventada que pode ser solução para os problemas, porque a utopia está num grande diagnóstico. É um diagnóstico dos problemas sociais. E, ao mesmo tempo, oferece o fármaco para os males sociais, de uma forma ficcional, na forma de uma narrativa. Isso configura um gênero, no meu ponto de vista. Laís: A Utopia do Morus, assim como algumas das outras utopias que vieram depois, era movida por um desejo de criticar a sociedade da sua época e também de propor reformas, mesmo que provavelmente os escritores de utopias não acreditassem que aquela sociedade que eles estavam descrevendo, inventando, fosse realizável. Por isso, as utopias costumam ser datadas, porque são bem ligadas a problemas históricos específicos. Além disso, como já disse o Berriel, elas são também contraditórias, ambíguas… Essa característica já aproximaria as utopias das distopias, que são narrativas que descrevem sociedades perfeitamente imperfeitas, ou sociedades perfeitas em seus defeitos. Berriel: Eu acredito que a distopia seja um galho do tronco da utopia, porque, em grande parte, o procedimento, o material da distopia, ele já está na utopia. De que forma? A utopia, digamos, as grandes utopias, as principais que foram sendo escritas, que ficaram, iluminaram a reflexão política, não só política, a reflexão ética, como grandes elementos para a discussão dos movimentos sociais, das formações dos diagnósticos. As utopias têm um problema grave, marcante, que é o seguinte: o utopista, quer dizer, o autor da utopia, ele oferece uma solução, um modo de organizar a vida. Então, as utopias inventam uma sociedade completa. Completa no sentido de que elas preveem como as pessoas vão morar, como elas vão trabalhar, como elas vão casar, como elas vão morrer, como elas se relacionam com a ciência, com a natureza, com outros países. É completa. Essa é uma exigência, digamos assim, das grandes utopias, das utopias clássicas, é fazer um desenho completamente suficiente do que seria uma sociedade. Ela funciona inteira, não está faltando nada.   Agora, o modo como as utopias fazem isso, já na Utopia do Morus, que é a primeira, depois na longa sucessão de dezenas ou centenas de utopias que foram escritas depois, normalmente elas têm essa característica de que elas já nascem prontas. Isso é uma grande questão. Muito atual, eu diria. Laís: O utopista escreve, então, uma narrativa em que ele expõe as ideias dele sobre um mundo perfeito, completo. Já dá pra ver um problema nisso, se a gente pensar que a ideia de perfeição normalmente é diferente pra cada pessoa: o sonho de alguns pode ser o pesadelo de outros. Só que o problema da perfeição não para por aí…    Berriel: Aquela, por exemplo, sociedade da ilha de utopia, do Thomas Morus, não nasceu de um desenvolvimento natural daquela sociedade, que a população foi vivendo a sua história, errando, acertando, corrigindo etc., refletindo… Não é. Simplesmente, praticamente do nada, chega uma pessoa, com um exército, que é o rei Utopus, com uma constituição já definida nos mínimos detalhes. E essa constituição, essas leis que ele traz são perfeitas, tidas como perfeitas. E, se elas são perfeitas, a perfeição é um problema grave, porque a perfeição significa congelamento da história, porque, se é perfeita, você não pode aperfeiçoar.  Laís: Na Utopia do Morus, que é localizada em uma ilha, qualquer problema do mundo real que você possa imaginar, na economia, nas relações humanas, enfim, qualquer problema, já está solucionado. E ele está solucionado antes de qualquer coisa, não pela experiência das pessoas, mas por uma lei fixa, racional, sem defeitos. Berriel: E aquele modo de operar, tido como perfeito, não pode ser aperfeiçoado, você não aperfeiçoa o perfeito. Ao mesmo tempo, aquela lei não tem defeitos que possam ser corrigidos, porque, sendo perfeita, ela não tem defeitos. Então, aquela sociedade, que é, na ficção, um outro lugar, o lugar que não é aqui, o sentido elementar da palavra utopia, mas é também um tempo congelado, porque, consequentemente, como está tudo perfeito, não pode ser mexido. Você não tem história. A história eliminou. E, se você elimina a história, você elimina os indivíduos, porque os indivíduos eles são histórias, histórias individuais, que se misturam e formam histórias coletivas, histórias dos povos, histórias das populações, histórias dos vários lugares. Na utopia não existe história.  Laís: A nossa individualidade depende da nossa história, da passagem do tempo, das nossas experiências, de conflitos, dos nossos erros, dos nossos enganos… E na utopia não tem nada disso. Como a história é eliminada, o tempo fica congelado em uma sociedade que é tida como perfeita; é como se as pessoas vivessem em um eterno presente. A gente pode perceber isso inclusive na forma como o texto é escrito. Berriel: Quando você lê uma utopia, não tem personagem. Só tem funcionários. Você imagina aqueles funcionários com uma bata branca, uma cara plácida, trazendo a sabedoria perfeita. Uma coisa horrível, né? Isso é, fala assim, “olha, que maravilha, uma sociedade perfeita”. Uma sociedade perfeita são perfeitos pesadelos, porque ela elimina aquilo, a última coisa a ser eliminada do mundo, que é o indivíduo. Pode eliminar tudo, menos o indivíduo, porque, se você eliminar o indivíduo, aí já está tudo eliminado, não tem mais nada.  Laís: A história é substituída na Utopia por uma espécie de hiper-racionalismo. O Estado tem, de antemão, soluções racionais pra todos os complexos problemas humanos. Berriel: E, de fato, na utopia você não tem as doenças, não tem fome, não tem guerra, não tem epidemias, você não tem uma série de coisas, porque todo o Estado funciona que é uma maravilha, às custas da própria alma da história, que é o indivíduo. Portanto, a utopia, a primeira utopia, já é uma distopia, mas só que será preciso os séculos passarem para que se tenha essa outra visão.  Laís: Então, agora, vamos ver um pouco melhor o que é uma distopia.  Berriel: Bom, em parte já está dito, a distopia é uma forma de sociedade, de Estado, tida como perfeita; e, na verdade, é uma forma absoluta, não estou querendo falar a palavra totalitária, mas é um Estado que tomou conta de tudo, e que também a primeira coisa é a eliminação do indivíduo. O indivíduo, com a sua atividade, seus problemas, as suas indagações, é o problema que precisa ser eliminado dentro das distopias. Mas a distopia tem uma outra característica, aí pegando as distopias bem concretas, e podemos falar até de coisas atuais, como Black Mirror, ou a história da Aia, são coisas bem atuais, que o que é que a distopia faz? Ela pega a nossa sociedade, que está cheia de problemas, e detecta um único problema, detecta um problema central. E esse problema, que existe na realidade, esse problema que afeta a sociedade, dentro da ficção da distopia, ele se torna grande demais, ele ganha um tamanho maior do que tem na realidade.  Laís: Vamos ver, então, essa questão com o exemplo de Black Mirror, uma série britânica que começou a ser exibida em 2011 e hoje em dia está disponível na plataforma de streaming Netflix. Ela já tem 5 temporadas, e cada episódio conta uma história diferente, que se passa em um presente alternativo ou em um futuro próximo. E o foco da série é abordar as consequências imprevistas que as novas tecnologias podem ter nas nossas vidas. Então…   Berriel: Black Mirror todo mundo tem esse trequinho aqui. Laís: O Berriel está falando do celular. Berriel: Isso é um problema. As relações sociais, as relações humanas, as relações intelectuais (nós estamos aqui no Black Mirror, nós dois aqui, certo?). No caso dessa série, a questão ética, essa é a questão central, a questão ética que envolve a vida cultural, a vida social, a vida afetiva, que está sendo gravemente afetada pelo espelhinho preto, ganha, no caso dessa série, uma dimensão maior do que é na realidade, mas essa é a função da arte, é distorcer. Lembra do deus Dionísio, que só vê a realidade quando está bêbado? Essa é a forma da arte ver a coisa, não como ela é, mas qual o tamanho que a realidade ocupa dentro das coisas. E essa é a função da arte. É colocar lentes. A arte tem que distorcer para dar o tamanho real das coisas. Isso é o Dionísio. E, no caso, só pegando essa série Black Mirror para dar um exemplo, pega uma questão, que é a interferência das coisas da internet nas relações humanas. Eu não sei se eu vi todos os capítulos, eu fiquei apavorado, eu ficava mal vendo aqueles capítulos. Eu me lembro muito particularmente de um.  Laís: O Berriel comentou sobre o episódio “Queda Livre”, que é o 1º da 3ª temporada da série. Esse episódio se desenrola em um mundo onde as pessoas se avaliam o tempo todo em um aplicativo. Cada um pode ter uma nota máxima de 5 estrelas; e essa nota, que é visível para todos, influencia muito a vida das pessoas, inclusive em um nível bem concreto, tipo uma oportunidade de trabalho ou o acesso a locais ou a serviços, o que pode ser dificultado ou facilitado, dependendo da nota de cada um. Nesse contexto, muitas das interações acabam sendo pautadas pela vontade de agradar os outros, para, assim, ser bem avaliado e ter mais oportunidade naquela sociedade. Aí, enfim, a protagonista do episódio encontra um jeito de aumentar a nota dela rapidamente, mas, pro azar ou pra sorte dela (eu acho que pra sorte), a estratégia dela acaba não dando muito certo… Berriel: Isso é uma coisa que de fato existe. Claro que a série coloca num nível, né… Então, eu acho que essa série é muito boa, gosto muito dela, ao mesmo tempo me sentindo muito mal com ela, porque ela percebe uma coisa, que é uma enorme fetichização das relações humanas. Eu percebo, por exemplo, em pessoas que eu conheço, a enorme solidão das pessoas que têm 3 mil amigos virtuais. Eu acho isso aí um grande problema, um grande problema ético, um grande problema civilizacional, eu acho que nós estamos em um buraco terrível e tudo isso faz parte, dessa coisa de você mediar as relações através de um objeto.  Laís: O Berriel deu outro exemplo desses objetos que estão no meio da nossa relação com as outras pessoas ou com as coisas do mundo. Uns 20 anos atrás, ele estava morando em Florença, na Itália, e, quando apareceram as câmeras digitais, ele percebeu uma mudança na atitude dos turistas que viajavam pra lá… Berriel: Até então as pessoas, os turistas, que viajavam por interesse cultural, tal… elas iam e ficavam um tempão olhando as obras de arte. Olhando ali o David de Michelangelo, por exemplo. E, então, era uma relação direta entre o fruidor da obra de arte e a obra de arte. Essa relação é muito exigente, muito cansativa; você contemplar uma grande obra de arte por um bom tempo te exaure, porque tira as melhores energias que tem em você, porque ela está te jogando pra cima. A partir do surgimento dessas maquinetas, aconteceu uma coisa muito estranha, e eu ficava observando, eu passava todo dia por ali, pela região central e tal, e eu passei a observar que as pessoas não conseguiam mais olhar as obras, mas elas olhavam a imagem na câmera digital. Então, você está ali, pelo amor de deus, se é pra ver imagem, você pode ver em casa, não é? Não precisa viajar, mas as pessoas não conseguem ver, porque mobiliza a estrutura da pessoa, a grande obra de arte abala a estrutura da pessoa, e quem sobrevive se eleva a um nível humano mais alto. Mas eu via aquelas pessoas, que estavam ali na frente da obra, e tinham que ficar olhando uma imagem, que ainda por cima é uma mercadoria. Esse é o processo de fetichização. E eu acho que isso é um elemento distópico.  Laís: As novas tecnologias estão criando um mundo novo; a gente está vivendo uma daquelas rachaduras históricas, como o Morus viveu na época dele. Só que, se a Utopia foi uma resposta do Morus pra essa situação, hoje em dia a gente tem buscado outras respostas…  Berriel: As utopias, se são a ideia de construir uma sociedade maravilhosa, ninguém acredita nisso, isso nunca foi verdade. Só que hoje nós sabemos que isso não é verdade, que nenhuma sociedade será construída por engenheiros.  As sociedades, elas podem ser benévolas, elas podem ser democráticas, isso significa um reconhecimento contínuo dos enormes problemas que jamais desaparecerão. A democracia é o livre trânsito das contradições, e não a resolução delas por uma autoridade hiper-racional.  Laís: Inclusive, o Berriel contou que, no século XX, nenhuma utopia foi escrita. Ele considera que a última utopia positiva é de 1890, do escritor e artista, William Morris; ela se chama, na tradução brasileira, Notícias de lugar nenhum – ou uma época de tranquilidade. Nessa história, que se passa em uma Londres do futuro, as pessoas se livraram da sua escravidão mental, elas são amáveis e, uma coisa importante e “utópica” pro Morris, as pessoas têm bom gosto. Então, se hoje a gente não é mais capaz de pensar em uma sociedade perfeita, pro Berriel, a distopia (que começou a aparecer lá pro final da Primeira Guerra Mundial) é agora a grande questão, o grande gênero da atualidade. Ela ajudaria a gente a se conhecer e a entender melhor esse novo mundo onde a gente vive. Berriel: As grandes distopias que nós temos, nas últimas décadas, filmes, principalmente… Blade Runner. Você assistiu Blade Runner, né? Blade Runner É uma espécie de Frankenstein, a história de Frankenstein atualizada né. E você tem essa questão de que as criaturas mais humanas são justamente as máquinas, são os robôs, os replicantes. É uma sociedade inteiramente fetichizada, a vida evaporou; a vida, em um sentido não biológico, mas em um sentido da alma, ela evaporou e se transfere aos objetos. E as distopias têm sido a forma quase insuperável de refletir sobre essas questões. Então, pensar hoje em dia em uma sociedade perfeita, nós não somos mais capazes. Então, as pessoas que estão preocupadas com o grave intervalo histórico que nós estamos vivendo, elas não conseguirão manter essa prática de crítica, de busca, de compreensão, sem uma leitura, uma assistência às distopias. Elas são a nossa salvação, né?!  Laís: E a gente chegou ao fim desse episódio, em que a utopia apareceu como um sonho que antecede o pesadelo, e a distopia como uma salvação pra gente refletir sobre os nossos problemas atuais. Seria muito Black Mirror pedir pra você avaliar esse episódio com 5 estrelinhas? Eu estou brincando! Mas, se quiser fazer algum comentário ou sugestão, procura a gente no Facebook, (facebook.com/oxigenionoticias – tudo junto e sem acento). Ou no Instagram e no Twitter, é só buscar por “Oxigênio Podcast”. Ah, se quiser falar direto comigo, meu e-mail é laistp23@gmail.com. O roteiro e a narração desse episódio foram feitos por mim, Laís Toledo. Os trabalhos técnicos foram feitos pelo Gustavo Campos e pelo Octávio Augusto, da rádio Unicamp. A edição do roteiro e a coordenação do Oxigênio são da Simone Pallone. Até mais!
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